Quase duas décadas após uma onda de queixas enfrentada pelo Brasil na Organização Mundial de Comércio (OMC) contra medidas de proteção ao setor automotivo, a história se repete. E ganha contornos semelhantes aos do passado. Desde que a União Europeia decidiu entrar com uma reclamação formal contra o atual plano automotivo brasileiro, em dezembro de 2013, Estados Unidos, Japão e Argentina pediram para ingressar como partes interessadas no caso, assim como fizeram europeus, coreanos e canadenses quando os japoneses fizeram igual questionamento, em 1996.

Naquela ocasião, a ajuda da Coreia nas negociações foi determinante para pressionar o governo brasileiro a alterar as medidas e adotar cotas de importação. Agora, a entrada de mais interessados indica uma batalha mais dura do que o previsto inicialmente. A queixa, que além do setor automotivo envolve políticas da Zona Franca de Manaus, está na fase de consultas formais, na qual os dois adversários negociam antes de um processo. Essa etapa é obrigatória antes da abertura do painel, quando começa a fase de arbitragem que decidirá o caso.

O prazo mínimo das consultas formais, de 60 dias, já venceu e o lado europeu pode optar pelo litígio a qualquer momento. Fontes ligadas às negociações indicam o caminho do painel como o mais provável e sugerem que o pedido deve ser feito até o final do ano, após as eleições presidenciais no Brasil. Mas a publicação de novas regulamentações sobre compras locais de autopeças pode provocar algum atraso. DINHEIRO apurou que o governo brasileiro já vem se preparando para a abertura do painel. Enquanto isso, interessados como o Japão e os EUA devem apresentar formalmente um novo pedido, caso pretendam participar da próxima etapa.

Isso deve acontecer diante da persistente insatisfação com as normas protecionistas do País, inalteradas até agora. Embora aparentemente se assemelhe com o caso do passado, há diferenças fundamentais na disputa atual. As reclamações dos anos 1990 não passaram da fase de consultas. Um recuo do Brasil, que incluiu cotas de importação, acabou beneficiando os envolvidos e evitou a abertura do painel. Desta vez, o País não recuou e ainda recusou a participação de outros interessados na fase de consultas, uma prerrogativa possível a quem é alvo do questionamento durante a etapa pré-litígio.

Como terceira parte, um país pode tentar influenciar o processo com apresentação de documentos e declarações. Segundo o embaixador Luiz Felipe Lampreia, ministro de Relações Exteriores do governo Fernando Henrique Cardoso e responsável pelas negociações do regime da década de 1990, o pedido de terceira parte costuma ser feito por um país que se sente prejudicado e quer ser ouvido. “É sempre importante, sobretudo quando se trata de países com esse peso”, diz Lampreia, referindo-se ao Japão e aos Estados Unidos. Ele cita como exemplo o caso da Coreia, terceira parte nas consultas do passado, e que pressionou para a adoção das cotas.

Há casos, porém, em que determinado país pretende apenas acompanhar o processo. Os especialistas acreditam que essa é a razão do pedido feito pela Argentina. Desde 2012, Estados Unidos, Japão e Europa estão por trás das mais duras críticas de protecionismo feitas ao Brasil na OMC. Suas delegações cobram explicações sobre medidas para o setor automotivo, desde que o governo elevou em 30 pontos percentuais o IPI de carros importados, no final de 2011, para conter a entrada de modelos estrangeiros, em especial os chineses.

Nas diversas reclamações feitas em reuniões da OMC, representantes japoneses e europeus demonstraram preocupação com o uso de impostos indiretos para estimular a produção local. O curioso, no entanto, é que as montadoras instaladas no Brasil, que são beneficiadas pelo Inovar Auto, são de origem estrangeira, o que gera conflito de interesse entre as matrizes e as filiais brasileiras. Os países reclamantes estão de olho ainda no impacto das medidas nas compras de autopeças estrangeiras, que também devem ser prejudicadas. Os questionamentos do passado deixaram uma lição ao País.

Técnicos do governo tentaram incluir elementos no Inovar Auto para reduzir os riscos de contestação na OMC. Daí surgiram as cotas para importadores que não pretendem instalar uma fábrica no Brasil. Limitada a 4.500 carros por ano, seu número é considerado baixo pelos representantes das marcas estrangeiras, que batalham junto ao governo para conseguir uma elevação. Outro ponto que torna mais robusto o plano atual é a vinculação dos benefícios tributários a investimentos em pesquisa e desenvolvimento, além de eficiência energética.

São argumentos mais fáceis de serem defendidos numa eventual disputa e a maior aposta do governo e dos fabricantes locais no caso. “Iremos nos defender dentro do alinhamento de que o Inovar Auto é fundamental para o desenvolvimento da tecnologia e da engenharia aqui no Brasil”, diz Luiz Moan, presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea). Desde a aprovação do regime, quatro montadoras optaram pela produção local, como Audi e Jaguar Land Rover. O potencial de investimento criado pelo programa supera os R$ 70 bilhões.

O prazo de vigência também compõe a estratégia de minimizar os riscos internacionais. O Inovar Auto entrou em vigor em 2013 e acaba em 2017. O período curto dificulta as ofensivas na OMC, já que a finalização de um processo pode se estender por anos. Ou seja, caso os europeus decidam pelo painel agora, a decisão deve sair praticamente junto com o fim do programa. O que os reclamantes querem evitar, porém, é uma prorrogação das medidas e ainda garantir que a reprovação internacional desestimule a reprodução de medidas do gênero em outros países.

Representantes da Anfavea já sinalizaram ao governo que estão prontos para começar as negociações da segunda etapa do Inovar Auto. Executivos de montadoras admitiram à DINHEIRO que a ofensiva na OMC deve pautar a nova fase do regime automotivo, além de causar constrangimento nos esforços do setor para abrir novos mercados com acordos bilaterais no futuro. Enquanto não se resolve a disputa internacional, o clima é de preocupação no setor. Uma dor de cabeça a mais aos executivos que já lutam contra uma retração de 10% no mercado neste ano, ao mesmo tempo em que tentam acompanhar as demandas de investimento impostas pelo próprio Inovar Auto.

Colaboraram: Denize Bacoccina e Luís Artur Nogueira