Nunca antes na história deste país as empresas deveram tanto. Em agosto, segundo o Banco Central, o total de empréstimos bancários às pessoas jurídicas atingiu R$ 1,65 trilhão, sem contar os US$ 421 bilhões em dívida externa nem os financiamentos dos fornecedores, registrados no mesmo período. Nesse cenário em que quase todos os empresários sentem-se com água à altura do nariz, algumas companhias vem conseguindo reduzir, ano após ano, o risco de se afogarem nesse mar de vermelho. Uma das primeiras lições da administração é que, para as empresas, dever é bom.

“Ao contrair um empréstimo e empregar o dinheiro em uma atividade que rende mais do que os juros, a empresa se alavanca positivamente e eleva o lucro”, diz William Eid Júnior, professor de finanças da Fundação Getulio Vargas. Perfeita na teoria, essa prática não costuma funcionar bem no Brasil. Os juros são elevados e, em tempos de queda das vendas, o risco de a conta não fechar aumenta exponencialmente. Para saber quem vem gerindo bem esse risco, a empresa de dados financeiros Economática pesquisou 591 empresas abertas, listadas ou não em bolsa, para saber quais delas vêm tendo sucesso em desviar-se das águas revoltas do endividamento.

Para isso, foi usado um indicador simples, a capacidade de a geração de caixa da empresa, medida pelo Ebit, pagar a dívida. O fato de apenas 4% das companhias analisadas terem conseguido melhorar seguidamente essa relação prova como a questão é complexa. Uma das aprovadas com distinção é a BRF, a empresa do ano de 2015 no anuário AS MELHORES DA DINHEIRO. Em setembro, duas das principais agências de classificação de risco, a Standard & Poors (S&P) e a Fitch, destacaram esse fato em suas avaliações.

A S&P manteve o rating da BRF e a segunda o elevou. O motivo foi o mesmo: forte geração de caixa e endividamento baixo. “É uma notícia na contramão de todo o mercado”, afirmou, na ocasião, Élcio Ito, diretor financeiro da BRF. Obter esse resultado requer disciplina, muito trabalho e a capacidade de tomar decisões duras e amargas. Uma das medidas foi a venda de ativos não relacionados ao negócio principal da BRF. Assim, em 2014 foram vendidas as divisões de lácteos e de carne bovina.

“Estamos nos preparando para o longo prazo para acelerar o crescimento”, diz Pedro Faria, presidente da BRF. “Nossos focos são a globalização e projetos que visem o aumento da receita, da rentabilidade, do capital de giro e, consequentemente, a melhora do fluxo de caixa livre.” Em maio, a BRF investiu US$ 725,14 milhões na recompra de ações e, simultaneamente, captou recursos no exterior por sete anos, pagando juros anuais de 2,75%. A operação representou um sinal de prudência financeira, pois o dinheiro captado quitou dívidas que custavam até 7,25% ao ano.

Essas ações e a reestruturação iniciada há três anos, com a chegada deAbilio Diniz à presidência do seu Conselho de Administração, diminuíram o endividamento. No segundo trimestre de 2013, a BRF devia R$ 7,4 bilhões e, dois anos depois, a fatura havia encolhido para R$ 6,1 bilhões, segundo a Economática. No mesmo período, a geração de caixa subiu 71%, de R$ 800 milhões para R$ 1,37 bilhão. Quando bem administrado, o endividamento pode ser uma alavanca incomparável para o crescimento. É o caso da JBS, dos irmãos Wesley e Joesley Batista, que promoveu um ritmo frenético de aquisições nos últimos dois anos.

Foram compradas 15 empresas, no País e no exterior, o que elevou o endividamento para R$ 34,6 bilhões em 30 de junho de 2015. Analisado de forma isolada, esse seria um número preocupante, ainda mais quando se constata que 87% desse total é devido em dólares, combinação capaz de elevar exponencialmente o consumo de tranquilizantes de qualquer executivo. No entanto, por esse lado, os irmãos Batista podem dormir sossegados. Seu diferencial é que 84% das receitas são dolarizadas, o que assegura uma proteção natural contra os solavancos do câmbio.

A JBS também soube transformar as empresas compradas em fortes geradoras de caixa, elevando seu faturamento anual para R$ 137 bilhões e se tornando a maior processadora de carne bovina e de frango do mundo. Ao incorporar marcas fortes, com margem de ganho maior, a empresa reforçou seu caixa, que estava em R$ 13,9 bilhões em 30 de junho. O sucesso pode ser medido por uma comparação simples. Em junho de 2014, se decidissem usar cada centavo da geração de caixa para pagar suas dívidas, os irmãos Batista levariam 3,2 anos para acertar as contas.

Doze meses depois, esse período havia encolhido para 2,4 anos. A alta do dólar também ajudou a Braskem, o braço petroquímico do grupo Odebrecht. Embora a relação entre sua dívida líquida e Ebitda, tenha aumentado de 2,92 vezes, no final de 2014, para 3,30 vezes neste ano, em dólares o indicador encolheu de 2,58 vezes para 2,55 vezes. O resultado é explicado basicamente pela elevação do faturamento, em grande parte decorrente de efeitos cambiais, e pela queda do Ebitda no primeiro trimestre. Não há uma estratégia única para garantir a saúde financeira.

Empresas que não possuem receitas em dólar, por exemplo, precisam cortar na própria carne. É o caso da calçadista paulista Vulcabrás, que envolveu-se em uma verdadeira cruzada contra o endividamento. O remédio foi amargo. Foram quase 30 mil demissões e o fechamento de 20 das 26 fábricas, com os cortes sendo executados a quatro mãos pelo presidente Pedro Grendene Bartelle e pelo consultor Cláudio Galeazzi, ex-CEO da BRF e do Pão de Açúcar, e carinhosamente conhecido como “mãos de tesoura”, no mercado. Deu certo.

No fim do primeiro semestre, o endividamento da empresa baseada em Jundiaí (SP) estava em R$ 633 milhões, queda de 6,5% em relação a 2014, e as dívidas de curto prazo recuaram ainda mais: caíram 16,3%, para R$ 244 milhões. A última linha do balanço ainda está no vermelho – o prejuízo foi de R$ 15,6 milhões de abril a junho – mas a geração de caixa quadruplicou em relação a 2014 e atingiu R$ 40,2 milhões. Para continuar essa guinada rumo ao azul, a Vulcabras continuará focando na marca Olympikus, responsável por 80% das vendas, que pode ser beneficiada pela alta do dólar na guerra contra os importados.

A Azaleia também volta ao jogo, e virá com coleções trimestrais (ou até mensais) para enfrentar Arezzo e Alpargatas. Uma receita parecida foi adotada pela Vanguarda Agro, uma das maiores produtoras de soja, milho e algodão do Brasil. A empresa passou os últimos dois anos cortando gastos e renegociando com os credores. O caso é parecido com o da JBS, em que mais de 80% das dívidas e das receitas são em dólares. “Nosso foco é reduzir a dívida”, diz Cristiano Soares Rodrigues, diretor financeiro da Vangauarda Agro. Ele nota um problema adicional.

“Nosso risco continua o mesmo, mas, de um ano para cá, o custo de captação internacional subiu dois pontos percentuais, devido à piora da percepção do Risco Brasil”, diz ele. A consequência é uma elevação imediata do custo do dinheiro captado, o que provoca problemas no curto prazo. É o caso da Arteris, dona da concessionária ViaNorte. A empresa vem lutando para manter as contas equilibradas em um momento de grandes oscilações das taxas. “Nosso problema não é o longo prazo”, diz Alessandro Levy, diretor de relações com o mercado da Arteris.

“Mas sim como administrar as necessidades de caixa no curto prazo.” Isso porque, a concessionária conta com uma linha de longo prazo no BNDES, atrelada à TJLP, que corrige 50% de suas dívidas. Do restante, 39% são indexados ao CDI e o restante ao IPCA. “Nossa preocupação constante é manter a dívida sob controle e trabalhar para sua redução”, afirma Levy. A tônica é semelhante no Magazine Luiza, comandado pela empresária Luiza Trajano. Com 800 lojas, a rede varejista se tornou uma das cinco maiores do País graças ao modelo de vendas a prazo, e tem se especializado em reduzir custos. Sua dívida líquida, no primeiro semestre, alcançou de R$ 1,39 bilhão, equivalente a 2,3 vezes o Ebtida.

“Estabelecemos a meta de reduzir os custos em 25%, mas trabalhando a cadeia produtiva acabamos reduzindo 55%”, disse Luiza. “Em momentos de crise, o papel do empreendedor é saber fazer mais com menos.” Parte da estratégia do Magazine Luiza para ampliar receitas passa pela diversificação dos canais de venda. Embora 57% dos consumidores ainda comprem em lojas físicas, a participação do e-commerce vem ganhando espaço. Segundo Fábio Yamamoto, da consultoria Tiex, de São Paulo, a batalha pelo controle do endividamento exigirá uma atenção redobrada dos executivos financeiros pelos próximos meses.

“Assim como as empresas têm dificuldade em encontrar alguns bens de capital nacionais, elas também têm problemas para encontrar crédito no mercado doméstico”, diz ele. Yamamoto, ao lado dos sócios Lucas Hanashiro e Samuel Lopes, vem prescrevendo receita muito parecidas para seus clientes. “As empresas com custos atrelados ao dólar têm de buscar formas de fazer hedge, seja fomentando a exportação, seja buscando fornecedores no mercado interno”, diz ele. “A gestão de dívidas agora se tornou algo crucial na vida das empresas.”

Com reportagem de Rodrigo Caetano, Rosenildo Gomes Ferreira, André Jankavski e Luiz Gustavo Pacete