24/03/2023 - 0:05
A perpetuação de uma sociedade de pensamento binário talvez seja uma das mais marcantes características dos tempos modernos. No Brasil as esferas econômica e política potencializaram a divisão de tudo em apenas dois polos, sendo o lado oposto invariavelmente o mau. Agem como se as camadas que os separam não fossem igualmente importantes e reais. E se isso já é um problema quando tratamos de ciência ou cultura, quando tentamos construir lados absolutos na política monetária somos invariavelmente levados ao erro. E foi assim que entramos no cenário do Fla-Flu da taxa de juros.
Quem defende a manutenção da Selic não tem empatia pelos pobres? Quem acha que é hora de baixar a taxa básica de juros é um irresponsável e populista? Sim e não. Para as duas questões. Isso porque não é possível olhar a condução monetária apenas pela simplista percepção de certo e errado. Na quarta-feira (22) o Copom, vinculado ao Banco Central, presidido por Roberto Campos Neto, decidiu manter a Selic em 13,75%. A decisão traz a bênção de parte do mercado financeiro, mas contraria o governo e a cadeia produtiva, que depende do acesso ao crédito.
Na prática, a manutenção significa dois pontos principais: o primeiro é que Campos Neto não cedeu à pressão feita por Lula e seus ministros nas semanas que antecederam a decisão, dando recado importante sobre o que é um BC autônomo. O segundo é que o Copom, por unanimidade, decidiu que entre assumir o risco de uma recessão ou de uma escalada inflacionária o da recessão seria menos danoso. “É preciso ter clareza de uma coisa: qualquer decisão traria danos econômicos e as duas impactam negativamente a vida da população mais pobre”, disse a economista Mônica de Bolle.
Pela decisão, a manutenção significa que os juros seguem em um patamar elevado, deixando que o custo do crédito permaneça alto e a inflação se mantenha minimante sob controle. Essa tem sido a aposta do BC desde 2021. Segundo o Copom, a manutenção é fruto também de incertezas da política econômica. “Entre os riscos de alta para o cenário inflacionário destaca-se a incerteza sobre o arcabouço fiscal e seus impactos sobre as expectativas para a trajetória da dívida pública.” Recado mais claro, impossível. Os economistas que formam o Comitê ainda citaram a maior persistência das pressões inflacionárias globais e uma desancoragem maior, ou mais duradoura, das expectativas de inflação para prazos mais longos. Na contrapartida, a perspectiva de uma queda adicional dos preços das commodities internacionais em moeda local; a desaceleração da atividade econômica global mais acentuada do que a projetada e a maior desaceleração na concessão doméstica de crédito formam as condições para que a pressão dos preços arrefeça nos próximos meses. Fatores que podem contribuir para a queda dos preços no Brasil e, enfim, abrir caminho para uma redução da taxa de juro.
Na prática o BC mostra ao governo que sua posição está tomada. Para a autoridade monetária, o risco de recessão ou desaceleracão econômica é menos custoso para o Brasil que uma potencial alta desenfreada nos preços. Idêntico ao que pensa o Fed (ver à página 34). E esse entendimento é compartilhado por parte dos agentes do mercado e economistas. Para eles, o BC não age como provedor da recessão, mas moderador da inflação. E no caso desta, o cenário não é tão positivo. O Focus, relatório semanal do BC, revelou na segunda-feira (20) que a projeção do mercado para o IPCA de 2024 subiu de 4,02% para 4,11% (o centro da meta é 3%). “Não existe isso de reduzir juros quando a projeção de inflação está acima da meta”, afirmou José Júlio Senna, ex-diretor do BC e chefe do Centro de Estudos Monetários do Ibre-FGV.
RECADOS A LULA De acordo o Copom, a questão dos preços ainda é o centro da preocupação e diante das movimentações dentro e fora do Brasil “o Comitê enfatiza que os passos futuros da política monetária poderão ser ajustados e não hesitará em retomar o ciclo de ajuste caso o processo de desinflação não transcorra como esperado.” Outro recado claro e duro para Lula e seu time. E se este posicionamento pode soar como uma ameaça de novos aumentos da taxa, ele também deixou evidente quais são as medidas internas que o governo precisa tomar para que a curva da Selic caia de modo consistente. Cuidar das contas. Simples assim. A reoneração dos combustíveis foi citada como positiva. Mas a apresentação de uma solução fiscal coerente e transparente seria o próximo sinal de comprometimento fiscal que iria convergir em uma natural redução dos juros.
A redução dos juros diante do arcabouço fiscal também é a aposta de Carlos Kawall, sócio-fundador da Oriz Partners e ex-secretário do Tesouro Nacional. Para ele, o problema tem sido a demora para apresentar o texto. A ideia inicial era sair no começo de março. Depois passou para antes da reunião do Copom. Agora foi jogada para depois de Lula voltar da China, em abril. Sem a certeza de um regramento fiscal factível, outros fatores, em especial os externos, fragilizam a economia e acertam em cheio na inflação brasileira. Reinaldo Le Grazie, sócio da Panamby Capital e ex-diretor do BC, diz que apesar de não haver sinais de qualquer problema no mercado bancário nacional, um efeito colateral é que as instituições financeiras fiquem mais cautelosas. Ainda mais, já que “o endividamento das famílias está na tampa, e isso esfria o consumo e a atividade econômica”, afirmou Le Grazie.
Por sentir esse efeito é que Lula e parte de seus ministros seguem cobrando do BC a redução. A atividade econômica vai cair. Cair quanto? Em qual intensidade? Essa resposta depende de fatores externos, como a atividade global, e internos, como a capacidade do governo de estimular a economia no fórceps. Com a atividade mais fraca do que já era previsto a tendência é que o emprego seja o primeiro a perder. Haverá diminuição da demanda também para as empresas que dependem de crédito (como construtoras e concessionárias) e um ciclo de dificuldades para os serviços em geral. Montadoras, por exemplo, já retomaram férias coletivas por não terem como desovar estoques. Marcela di Ângelo, economista e ex-diretora do BC, diz que essa é a realidade. “A economia já patina agora, reflexo das altas passadas”, disse. Para os economistas, as quedas, diante de um arcabouço fiscal crível, ficaria entre junho e novembro.
SELIC DEVERIA CAIR Enquanto parte dos especialistas endossa a ponderação de Campos Neto — e em nome da precisão é preciso ressaltar que as decisões sobre a Selic são colegiadas, e não de seu presidente —, a cadeia produtiva e o governo federal engrossam o coro contra o estágio dos juros. À DINHEIRO o ministro Rui Costa, da Casa Civil, afirmou não haver sentido na manutenção. “Essa decisão não lê o Brasil real”, afirmou. “Não há justificativa interna para aumento da inflação no horizonte, então manter em 13,75% contrai a atividade econômica e não ajuda em nada o Brasil.”
No entendimento do ministro Rui Costa uma taxa em 13,75% é compatível com uma inflação de 10%, como foi em 2021, “mas não faz sentido com a inflação atual girando entre 5% e 6%.” O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, também se posicionou. “Eu entendo a decisão do BC como preocupante.” Segundo ele, o relatório bimestral da Lei de Responsabilidade Fiscal sustenta as projeções de maior controle das contas públicas. O documento citado revela que o déficit do governo federal ficará este ano em R$ 107,6 bilhões, bem abaixo dos R$ 230 bilhões projetado pelo Orçamento de 2023, feito na gestão passada. “Nesse momento de contração econômica o BC considerar novos aumentos significa comprometer a atividade fiscal, já que se as empresas não conseguirem pagar impostos elas deixam de contribuir na arrecadação”, afirmou. Para a próxima reunião do Copom, Haddad espera um posicionamento diferente “condizente com a realidade do País”.
ENDIVIDAMENTO Há ainda outro risco nesse cenário de juro inalterado. O economista José Luis Oureiro entende que a justificativa para manutenção da Selic não é condizente com a realidade econômica brasileira. Para ele, o argumento do Copom de citar a crise bancária nos Estados Unidos para a manutenção não tem qualquer procedência. “Esses episódios apontam para um risco deflacionário a nível mundial, o que requer o afrouxamento da política monetária nos Estados Unidos e na Europa, bem como no Brasil”, disse. O Fed ainda entende o oposto e subiu suas taxas. Mas por aqui, Oureiro não descarta outros efeitos colaterais. “Existe um risco não desprezível de crise financeira devido ao elevado endividamento das empresas não-financeiras.”
O presidente da Fiesp, Josué Gomes da Silva, chamou de pornográfica a atual taxa de juros no Brasil. “Sempre querem associá-la a um abismo fiscal. Num país que tem 73% do PIB de dívida bruta. Tirando as reservas [cambiais] são mais ou menos 54% de dívida. Tirando o caixa do Tesouro Nacional, são menos de 45% do PIB de dívida líquida, num país com a riqueza do Brasil”, disse. Essa visão foi compartilhada por Geraldo Alckmin, vice-presidente da República e ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços. Ambos participaram de um evento do BNDES e dividiram o palco com Joseph Stiglitz, vencedor do Prêmio Nobel de Economia em 2001 e professor da Universidade Columbia. Segundo ele, a atual Selic do Brasil é chocante. “Uma taxa de juros de 13,75% ou 8% real mataria qualquer economia”, afirmou.
Se é uma encrenca ao setor produtivo, acaba sendo pior para o cidadão comum, em especial aos mais pobres. Para Rafael Costa Marinho, professor de macroeconomia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, com o juro alto, o crédito caro e a economia arrefecendo, é preciso reforçar as políticas populistas e de transferência de renda. “Exige um Estado maior, porque a necessidade de amparar precisar chegar onde a atividade econômica não chega.” Mônica de Bolle concorda. “Hoje, para mim é mais penoso ter optado pelo caminho da manutenção porque o risco de recessão ficou mais alto.” Uma cilada que só tem um consenso: dela o Brasil só sairá quando colocar na mesa o Arcabouço Fiscal.
Nos EUA, Fed decide subir juro

No Brasil, a expectativa era se haveria queda dos juros. Nos Estados Unidos, parte dos economistas especulava sobre o mesmo movimento, em especial depois da quebra dos bancos SVB e Signature. Que nada! Na mesma quarta-feira (22) em que aqui o Copom decidia sobre a manutenção da Selic em 13,75%, por lá o Fomc, equivalente ao Copom do Federal Reserve (Fed), o banco central americano, mostrou que não está para brincadeira no combate à inflação. E elevou em 0,25 ponto percentual a taxa, colocando o juro base para uma faixa de 4,75% a 5%. Antes de a crise bancária tirar o sono dos economistas mundo afora, Jerome Powell, presidente do Fed, falava em saltos ornamentais na taxa de juro e o mercado arriscava dizer que viria um avanço de 0,5 ponto percentual. Depois da quebra dos bancos, a expectativa mudou para algo entre queda, manutenção ou um avanço mais modesto. Dito e feito. A autoridade monetária dos EUA aumentou os juros pela nona reunião consecutiva. O Fed começou o processo de alta das taxas em março de 2022. Em um ano, subiu em 4,75 pontos. O percentual atual está no maior nível desde agosto de 2007, quando era de 5% a 5,25% ao ano. Essa subida deve guiar altas em outros países. No relatório, Powell afirmou ainda haver algum espaço para novas contrações, mas disse estar atento ao andamento e condução da estrutura bancária americana. A inflação nos EUA segue pressionando a economia. Em 12 meses até fevereiro o Índice de Preços ao Consumidor ficou em 6%, muito acima da meta de 2%.