Cinco dos oito andares do QG da Fifa, a entidade que comanda o futebol, em Zurique, na Suíça, estão localizados no subsolo, a exemplo dos cofres fortes dos bancos locais. O prédio tem ares de fortaleza. Os visitantes, dependendo do lugar para onde se dirigem, devem assinar um acordo de confidencialidade, que os impede de revelar o que verão no interior do edifício. Na quarta-feira 27, a suntuosa sede foi alvo de uma operação policial que promete revelar os segredos, em grande parte inconfessáveis, enterrados nos porões de uma das organizações mais controversas do mundo esportivo.

Agentes suíços e do FBI, a polícia federal dos Estados Unidos, prenderam diversos executivos ligados à entidade. Entre eles, José Maria Marin, ex-presidente da CBF, Jeffrey Webb, vice-presidente executivo da Fifa, Nicolás Leoz, ex-presidente da Confederação Sul-americana, além de outros quatro importantes comissários de federações das Américas e do Caribe. As investigações, conduzidas pela Justiça americana, prometem dar um basta nas práticas abusivas e corruptas, que tomaram conta das relações entre cartolas e patrocinadores do esporte mais popular do planeta.

“Isso é só o começo”, afirmou Loretta Lynch, secretária de Justiça dos Estados Unidos, que está à frente da operação. “Essas pessoas deveriam manter a honestidade do futebol. Em vez disso, eles corromperam o negócio em nível mundial para servir a seus interesses e enriquecer.” As prisões aconteceram às vésperas das eleições para a escolha do novo presidente da Fifa, na sexta feira 29. Envolto em polêmicas, o pleito confirmou a reeleição do economista suíço Joseph Blatter, para seu quinto mandato consecutivo. Ele está à frente da entidade desde 1998, quando sucedeu ao brasileiro João Havelange, que permaneceu 24 anos no posto.

Sob seu comando, a Fifa se tornou uma máquina de fazer dinheiro. Nos últimos quatro anos, seu faturamento somou cerca de US$ 5,7 bilhões. Somente na Copa do Mundo do Brasil, no ano passado, a entidade lucrou US$ 2,6 bilhões. Empresas do porte de Adidas, Hyundai e Visa, entre outras, desembolsaram US$ 1,6 bilhão, entre 2011 e 2014, a título de patrocínio. A grandeza do negócio do futebol é proporcional ao tamanho das suspeitas de roubalheira. Os malfeitos, que já proliferavam à época de Havelange, incluem o pagamento de propinas para ganhar contratos, lavagem de dinheiro e venda de votos para a escolha das sedes das Copas do Mundo.

No centro do esquema, aparece um brasileiro, o empresário José Hawilla, dono da Traffic, agência de marketing esportivo que detém os direitos de transmissão de diversos campeonatos, além de controlar empresas de comunicação no Brasil. J. Hawilla, como é mais conhecido, se declarou culpado, segundo a Justiça americana, de acusações de extorsão e lavagem de dinheiro, em dezembro do ano passado. O empresário concordou em pagar uma indenização de mais de R$ 470 milhões. Em entrevista exclusiva à jornalista Gisele Vitória, da IstoÉ, Hawilla negou que tenha feito um acordo de delação premiada. “Não existe delação. Isso é lenda da imprensa”, afirmou o empresário.

Sobre a indenização paga à Justiça americana, ele alegou ser referente a uma empresa do grupo nos Estados Unidos, sem relação com o Brasil. Hawilla, que controla a TV TEM, a principal afiliada da rede Globo de televisão, vive hoje em Miami, na Flórida, para onde se mudou após ter sido diagnosticado com um câncer na garganta. Ele afirma já estar recuperado da doença. O envolvimento de Hawilla, chamado pela imprensa estrangeira de “o dono do futebol no Brasil”, escancara os meandros da atuação dos cartolas brasileiros, em especial dos três últimos presidentes da CBF, Marco Polo Del Nero, o atual mandatário, e seus antecessores, José Maria Marin e Ricardo Teixeira, ex-genro de Havelange.

O relatório apresentado pelo FBI detalha um esquema de pagamento de propinas para a compra dos direitos de transmissão da Copa do Brasil, um dos principais campeonatos do País. O documento não cita o nome dos envolvidos, mas detalha suas funções e cargos na época. Dessa forma, é possível supor quem são os chamados “conspiradores.” Em 2011, diz o FBI, uma suposta disputa entre Hawilla e Kléber Leite, ex-presidente do Flamengo, terminou com Hawilla concordando em pagar R$ 12 milhões a Leite para recuperar os direitos sobre o campeonato. A questão é que Leite conseguiu o contrato graças a um acordo feito com Ricardo Teixeira, então presidente da CBF, que envolvia o pagamento de R$ 2 milhões em propinas anuais.

Após deixar a entidade, Teixeira continuou recebendo, mas teve de dividir o bolo com Marin e Del Nero. Uma conversa interceptada pelo FBI, em abril de 2014, mostra que Marin se sentia incomodado por ter de dividir o butim com Teixeira. “Está na hora de fazer as coisas da nossa maneira”, disse Marin a Hawilla, que concordou. “Claro, esse dinheiro tinha de ser dado a você.” Na época da disputa pelos seus direitos de transmissão, a Copa do Brasil era patrocinada pela montadora de automóveis coreana Kia. Segundo José Luiz Gandini, presidente da companhia no Brasil, o contrato foi fechado com a Traffic e compreendia a mudança do nome do torneio para Copa Kia do Brasil.

“Nunca tivemos qualquer contato com dirigentes da CBF”, disse Gandini à DINHEIRO. “Quanto aos fatos apontados pela imprensa, desconhecemos.” Apenas uma empresa que patrocina o futebol foi citada no relatório do FBI: a Nike, a maior fabricante de artigos esportivos do planeta. O episódio em questão é a assinatura do contrato de fornecimento de material esportivo celebrado com a CBF, em 1996. Na época, a empresa teria concordado em pagar, além dos US$ 160 milhões pelo patrocínio, outros US$ 30 milhões à Traffic, pela intermediação do acordo. Hawilla, diz o FBI, acabou repassando metade desse valor à Teixeira.

Em nota, a Nike, que no passado teve seu nome vinculado à prática de trabalho escravo nas fábricas de fornecedores na Ásia, negou que esteve envolvida em conduta delituosa e repudiou fortemente toda e qualquer forma de manipulação ou propina. “Nós já estamos cooperando, e seguiremos cooperando, com as autoridades”, disse a companhia. A Fifa e a CBF possuem, entre seus parceiros, empresas de peso, como a americana P&G, fabricante de bens de consumo, o banco brasileiro Itaú, e a americana Visa, de pagamentos eletrônicos. A maioria dos patrocinadores das duas entidades preferiu não se pronunciar, ou emitiu comunicados dizendo que vai acompanhar as investigações.

A Visa e a Coca-Cola, no entanto, adotaram um tom mais agressivo. “Nosso desapontamento com a entidade, em virtude dos acontecimentos, é profundo. Esperamos que a Fifa tome medidas imediatas para resolver a situação, começando com a reconstrução da sua cultura com fortes fundamentos éticos, de modo a restaurar a reputação dos jogos junto aos fãs”, disse a Visa, em comunicado. “É importante que isso seja feito agora. Caso não seja, vamos reavaliar nosso patrocínio.” Para a Coca-Cola, uma das mais antigas parceiras da entidade, “essa longa controvérsia manchou os ideais da Copa do Mundo.”

INCIDENTE DIPLOMÁTICO Na esteira do escândalo escancarado pelo FBI, os dois próximos mundiais, que devem acontecer na Rússia, em 2018, e no Catar, em 2022, estão na berlinda. Paralelamente aos trabalhos da polícia americana, as autoridades suíças estão apurando o pagamento de propinas no processo de escolha dos países-sedes. Essa investigação é a chave para entender por que os Estados Unidos se envolveram tão profundamente em um esporte que não está nem entre os três mais populares do país. Os americanos, que já haviam sediado a Copa de 1994, se candidataram para receber a Copa de 2022, mas, surpreendentemente, perderam a disputa, em 2010, para o Catar, um país com menos tradição no futebol e que ainda é acusado de graves violações aos direitos humanos.

No caso da Rússia, a questão vai além do futebol. Americanos e russos estão envolvidos em um conflito diplomático que está sendo chamado de “nova guerra fria.” No centro das discussões está a disputa entre Rússia e Ucrânia pelo controle da Criméia. Não por acaso, o presidente russo, Vladimir Putin, classificou a operação do FBI na Suíça de “outra tentativa flagrante dos americanos de estender sua jurisdição para outros países.” Putin ainda defendeu Blatter. “Não tenho dúvidas de que se trata de uma tentativa óbvia de impedir que Blatter seja reeleito”, afirmou. Ele acha improvável que seu país perca o direito de sediar a próxima Copa.

Mesmo que o cerco pareça estar se fechando, Blatter se mostra despreocupado. Na quinta-feira 28, ele abriu normalmente o congresso da Fifa em Zurique, para a eleição do presidente da entidade. Em seu discurso, ele atribuiu a responsabilidade pelo escândalo a alguns poucos dirigentes. “Que isso se torne um ponto de virada”, disse. Após vencer o primeiro turno, por 133 a 73, o dirigente foi reeleito em virtude da desistência de seu oponente, o príncipe jordaniano Ali bin al-Hussein. Blatter conseguiu construir uma forte base de apoio,

especialmente entre as confederações de menor expressão no futebol. A Fifa possui 209 membros, número superior ao da Organização das Nações Unidas (ONU). Isso acontece por que alguns países não reconhecidos pela ONU, como a Palestina, são aceitos pela Fifa. Uma rede de favores pessoais e investimentos em pequenas nações, como Trinidad e Tobago e Ilhas Cayman possibilitaram a criação de um curral eleitoral que garante os votos necessários a Blatter. “Essa eleição sempre foi uma grande encenação”, afirma o escocês Andrew Jennings, autor de diversos livros sobre a corrupção na entidade e que colaborou nas investigações da polícia americana.

“Ele criou um clube impenetrável. A única esperança de mudança era o FBI.” Enquanto isso, no Brasil, o senador Romário (PSB-RJ) protocolou um pedido de CPI no Senado, algo que ele vinha perseguindo desde seu primeiro mandato como parlamentar, na Câmara dos Deputados. “Del Nero será o primeiro convocado a depor”, afirmou o ídolo do Vasco e da Seleção. Um dos maiores craques de todos os tempos, Romário não poupou críticas aos dirigentes. “Corruptos e ladrões que fazem mal ao futebol foram presos, inclusive José Maria Marin. Ladrão tem que ir para cadeia. Parabéns ao FBI”, afirmou o tetracampeão.

“Infelizmente não foi a polícia brasileira que prendeu.” Del Nero, que estava na Suíça, saiu às pressas do país e retornou ao Brasil. Ele escafedeu-se das eleições na Fifa e achou melhor mobilizar-se para enfrentar e, se possível, solapar a CPI. A prisão de Marin foi comemorada, também, fora do mundo do futebol. O cartola tem em sua folha corrida, além da passagem pela CBF, marcada pela derrota de 7 a 1 sofrida pelo Brasil para a Alemanha, na semifinal da Copa do Mundo, dois anos como governador biônico de São Paulo, em 1981 e 1982. Ele foi vice de Paulo Maluf, que em 2013 entrou na lista de procurados pela Interpol, ao lado do médico Roger Abdelmassih e do mensaleiro Henrique Pizzolato.

Mas o episódio mais desabonador protagonizado por Marin foi um discurso na Assembleia Legislativa de São Paulo, em 1975, em plena ditadura, afirmando que a TV Cultura estava infestada de comunistas. Dias depois, o então diretor de jornalismo da emissora, Vladimir Herzog, foi preso e acabou assassinado na tortura. “Vejo sua prisão com muita satisfação”, afirmou Ivo Herzog, filho de Vladimir, ao site Brasil Post. “Fico satisfeito porque ele sempre se safou.” Marin, que está preso na Suíça, deve ser deportado para os Estados Unidos. É improvável que ele consiga liberdade provisória até seu julgamento.