02/09/2022 - 0:20
Estou verdadeiramente constrangido de começar este artigo desta maneira, mas em nome do que há de mais próximo da verdade não existe outra forma: o Brasil nasceu de uma cagada. Precisamente, devido a uma diarreia que acometia Dom Pedro naquele 7 de setembro. Numa daquelas paradas intestinais, na viagem que o príncipe fazia do Rio de Janeiro (via Santos) até São Paulo, ele recebeu um mensageiro oficial. O sujeito levava mais do que as ameaças de Lisboa para que o Brasil regredisse a um status equivalente ao da época de colônia. Portava a carta com a decisão de Maria Leopoldina, a vienense mulher de Dom Pedro e verdadeira arquiteta da independência, para que o príncipe declarasse a separação do Brasil de Portugal. Às margens do riacho do Ipiranga, Dom Pedro subiu em sua mula (e não num cavalo) e gritou a emblemática frase de independência ou morte que enverniza a história nacional. Não fosse a desinteria, é fato que teria escolhido fazer a declaração no Pateo do
Collegio, que fica uns 6 km pra cima. Ok, acontece. A favor de Dom Pedro vale dizer que ele parecia curtir o País. Mais de um cronista da época garante que o imperador se sentia muito mais brasileiro que português. Em setembro de 1822, estava a um mês de fazer 24 anos e vivia por aqui desde os 9, parecendo realmente amar a rotina nos trópicos. Mesmo que o sentimento fosse genuíno, foi mais uma das bizarrices nacionais, daquelas que só existem no Brasil: afinal, processos de independência envolvem rupturas e sangue. Por aqui, foi mais parecido com uma passagem de bastão. Algo como o filho suceder o pai na firma da família. Tanto que o imperador, que abdicou do trono brasileiro em 1831, ainda arrumou tempo para reinar Portugal, como Pedro IV, de 1826 a 1834, quando morreu.
Na prática, nossa narrativa bicentenária é recheada de fake news: não houve cavalo, não houve brado retumbante, não houve troca de poder, não houve aquela cena épica na tela feita 66 anos depois por Pedro Américo (e bastante ‘inspirada’ na obra 1807 Friedland, pintada 13 anos antes pelo francês Ernest Meissonier). E não houve independência — a economia nacional continuou sendo movida à base de escravos e contrabando. Como havia sido nos 300 anos anteriores, sob Portugal.
Tudo ao contrário do que aconteceu nos processos libertadores das colônias espanholas da América Latina, em que houve ruptura de poder e de ordem econômica. A da Argentina, por exemplo, começou em 1810 numa guerra contra a Espanha. A primeira junta de governo tinha políticos, comerciantes, advogados, religiosos. Não havia herdeiro do trono espanhol. Foi tiro, porrada e bomba. Caiu uma colônia e nasceu uma ideia de República. Aqui, no dia 8 de setembro, de certa forma tudo seguiu o rumo de sempre. Na economia, escravidão por mais sete décadas. Na política, sistema monárquico por mais sete décadas.
Esse caldo moldou a gênese nacional. O Estado aqui não é público. Tem dono. Mesmo quando a monarquia cai, não assumem liberais. Assumem militares golpistas. E a elite econômica segue sempre amalgamada à elite política. O Brasil é esse lugar estranho, no qual revolução é feita para que nada mude. Em que na política o Partido Liberal é formado substancialmente por gente que não curte trabalhar, uma turma que tem ojeriza a privatizações e está sempre de olho em boquinhas públicas em estatais e fundações. Na economia, nada muito diferente. Ainda produzimos levas de empresários reluzentes que defendem protecionismo, isenções e o uso do Estado em benefício privado. Gente para quem é melhor golpe do que respeitar resultado de eleições.
É fato que temos um problema com a semântica. Não se pode falar em uma Nação adulta com nossos indicadores de desigualdade, de IDH, de renda por família. Não se pode falar em democracia quando a Justiça Eleitoral precisa dar carteirada no limite da lei para enquadrar golpistas de aplicativo de mensagens, ou reunir 2 mil para evitar um ataque às eleições, ataque que está cantado desde que Bolsonaro assumiu a cadeira de presidente. Com 10 milhões de desocupados, 40 milhões de trabalhadores informais, quase 700 mil mortos por Covid, crescimento de menos de 1% em média na década e 33 milhões de brasileiros com fome, a gente pode até fazer a narrativa de 200 anos de Independência ou Morte. A história, por enquanto, chama só de Morte.
Edson Rossi é redator-chefe da DINHEIRO.