A política cambial de 1997 a 1999 é um assunto caro ao economista Gustavo Franco. No comando do Banco Central, Franco defendeu a cautela na hora em que o presidente Fernando Henrique Cardoso decidiu promover uma maxidesvalorização cambial. “Eu gostaria de fazer no Carnaval e não em janeiro”, disse o economista. “Achava impossível qualquer mudança no regime cambial sem subir a taxa de juros.” FHC preferiu o caminho sugerido pelo então diretor do BC, Chico Lopes – em janeiro e sem elevar juros –, levando Franco a deixar o governo. Em entrevista à DINHEIRO, ele afirma que o atual tripé econômico está comprometido, principalmente a responsabilidade fiscal. “Esse é o pensamento que pessoas de cabeça heterodoxa não têm”, diz Franco, atualmente um dos sócios da Rio Bravo Investimentos.

 

71.jpg

 

Qual foi sua participação na criação do Plano Real?

Estou entre os pioneiros, entrei junto com Fernando Henrique Cardoso no Ministério da Fazenda, em 1993. Fiquei na posição de secretário-adjunto até outubro, quando passei para o Banco Central, no cargo de diretor de assuntos internacionais. Esse foi o momento em que Pedro Malan assumiu a presidência do BC, no lugar de Paulo César Ximenes. É mais ou menos nessa altura que Pérsio Arida assumiu o BNDES e aí as conversas sobre o plano de estabilização esquentaram. A data de coração do Plano Real para nós, da equipe, não foi 1º de julho, mas 28 de fevereiro de 1994, momento em que saiu a medida provisória criando a URV, que era uma média de três índices de inflação: o IPCA-E, o IPC da Fipe na terceira quadrissemana e o IGP-M.

 

Qual foi o diferencial do Plano Real em relação aos planos anteriores?

Em primeiro lugar, atacamos a infecção e não a febre. O Real tinha muitos dos truques de desindexação que os outros planos já tinham trabalhado, mas fizemos melhor que eles, aproveitando o conhecimento acumulado. A diferença importante era a de que, pela primeira vez, se reconhecia que a inflação brasileira não era inercial, que nós tínhamos um problema e que iríamos atacá-lo.

 

A questão fiscal foi importante?

A fiscal e as reformas. Mais uma vez, o caos fiscal que o Brasil vivia requeria como solução que se avançasse em uma porção de reformas. Arrumar a vida financeira dos Estados e da União, privatização de empresas, lei de responsabilidade fiscal, todas essas coisas eram reformas de abrangência mais ampla, mas fundamentais para que se tivesse uma vida fiscal responsável. A moeda nada mais é que a expressão do crédito público e ele precisava ser reformado e reconstruído quase do zero.

 

Qual foi o papel do câmbio nessa primeira etapa?

Foi importante, talvez mesmo essencial, porque os efeitos das reformas que afetariam o equilíbrio fiscal iam demorar. Não iríamos resolver todos os problemas fiscais do Brasil em pouco tempo. Nós tivemos a vantagem de ter uma situação externa muito favorável, de tal sorte que o câmbio flutuou no começo de 1994 e se valorizou, coisa que ninguém imaginava que poderia acontecer. Mas foi o mercado que fez isso, não foi nenhum artificialismo.

 

72.jpg

 

 

Em que momento os srs. sentiram a necessidade de promover desvalorizações?

Elas começaram em março de 1995. Nós mudamos o sistema de uma banda fixa para uma banda móvel e, a partir dali, a taxa de câmbio seguiu uma taxa de desvalorização que alcançou pelo menos 8% ao ano. Mas com muito cuidado para que não soasse como uma indexação do câmbio. 

 

Em entrevista para esta edição, o presidente Fernando Henrique disse que não havia, em 1999, consenso na equipe econômica sobre a maxidesvalorização. Era uma decisão difícil?

Em 1999, diferentemente de 1995, quando havia condições externas muito favoráveis, havia crises: um problema bancário lá fora e o mundo tinha mudado com a crise na Rússia. Dentro da equipe econômica havia certo consenso da necessidade da mexida no câmbio e a grande discussão era como e quando. Havia total consenso que o “quando” não era em 1998, pois era um ano de eleição, estávamos no pico da crise e tínhamos de dominá-la para depois mexer. 

 

O presidente Fernando Henrique disse que, se o sr. tivesse pilotado a operação feita pelo Chico Lopes, teria dado certo, porque o mercado tinha medo do sr. …

O Chico Lopes se apresentou para me substituir na presidência do BC com uma ideia sobre a mudança na política cambial. Uma coisa era decidir quem seria o presidente do BC e outra coisa era definir a política cambial. Para encurtar uma longa história, foi o presidente Fernando Henrique que decidiu o que fazer. Sim, o presidente queria que eu ficasse para fazer a mudança, mas a mudança que eu gostaria de fazer era bem diferente da do Chico. Acho que havia duas diferenças, uma maior e outra menor: a menor era que eu gostaria de fazer no Carnaval e não em janeiro, por razões técnicas, inclusive pelos feriados. A diferença maior é que eu achava impossível qualquer mudança no regime cambial sem subir a taxa de juros. O Chico achava que poderíamos fazer naquela hora e sem aumento da taxa de juros, através desse sistema que era a banda diagonal endógena – que teve como primeiro nome banda inteligente. Era decisão do presidente e ele optou pelo que o Chico estava propondo e, a partir daí, me retirei do cenário. Acabou que o BC, no regime do Chico, perdeu o controle da situação e, portanto, a mudança foi malfeita. 

 

O sr. teria feito alguma coisa diferente no BC? 

Sempre que me fazem essa pergunta, a resposta é não. Mas tem um pouquinho daquela história de “será que o governo não insistiu demais em manter uma taxa de câmbio apreciada artificialmente? Não foi um erro?”. Foi uma versão errada das coisas, vendida pela oposição, que dizia que a taxa de câmbio valorizada era um artificialismo e que o governo se empenhava em intervir para manter a taxa valorizada. Era exatamente o contrário. Na minha vida política, que vai de 1994 até 1998, com breve exceção na crise da Ásia, o que eu fiz foi comprar câmbio, acumular reserva e evitar que o real se valorizasse mais. 

 

O sr. acha que o tripé, hoje, está comprometido?

Acho que estamos vivendo um período crítico do tripé. O governo Dilma deu uma guinada heterodoxa, perigosa e malsucedida na política econômica. Nós não tivemos nenhum ganho expressivo em termos de crescimento. Ao contrário, se exauriu um tanto da energia que vinha baseada em um consumo alavancado, e a formação de capital não andou. A inflação está maior, a situação fiscal piorou, a perda de credibilidade este ano, em particular, foi muito grande e as situações localizadas estão muito delicadas, como a da Petrobras e a do setor elétrico. Isso, curiosamente, está trazendo para o período eleitoral uma ansiedade parecida com a de 2002, na qual muita gente tem medo de uma guinada ainda mais pronunciada na direção heterodoxa. No entando, desta vez, ao contrário de 2002, não é o medo da vitória da oposição, mas do governo.

 

O sr. acha que o Brasil poderia ambicionar metas de inflação dos países desenvolvidos? 

Claro que sim. Precisa de uma situação fiscal compatível com isso. A responsabilidade fiscal não é apenas uma condição para que a inflação seja baixa, é uma pré-condição para o crescimento alto. Esse é o pensamento que pessoas de cabeça heterodoxa não têm, pois acham que o desequilíbrio fiscal é pré-condição para o crescimento alto, mas é uma tolice completa e pegajosa. Isso tem que ser extirpado da cabeça das pessoas.

 

Em algum momento, o real vai ser uma moeda de referência, pelo menos aqui na América Latina?

Em boa medida, já é. E você vê isso na área da tríplice fronteira e em algumas outras onde existe muito trânsito de brasileiros. Repare, porém, que a moeda brasileira só vai ter importância como uma moeda de reserva internacional na medida em que o resto do mundo tiver demanda por reais para transacionar com o Brasil. Não é questão da solidez, mas de o País ter uma presença internacional muito restrita.