Nathalia Arcuri construiu mais que um ecossistema que conversa de finanças com 25 milhões de brasileiros de forma descomplicada e ao mesmo tempo altamente sólida. Construiu uma organização orientada por valores e propósito. À frente da Me Poupe, que nasceu como canal no YouTube há sete anos, ela traz conteúdos distribuídos por sites, redes sociais, cursos, livros, programas em TV, rádio e agora lançará um app. “Para mudar o comportamento financeiro das pessoas e que seja acessível a 100% da população brasileira”, afirmou. Seu estilo direto, bem-humorado e editorialmente independente atrai todo perfil de público. Formada em jornalismo, foi estudar educação financeira, economia comportamental, planejamento em finanças, neuroeconomia… Largou uma ascendente carreira na TV e lançou a Me Poupe. Tudo para tocar o seu projeto de dar “liberdade financeira às pessoas”. Nesta entrevista, ela resumiu seu ideário.

DINHEIRO — Você diz que começou a olhar para finanças com 7 anos. O que há dessa história no DNA da Me Poupe?
NATHALIA ARCURI — Muito. Nasci em 1985. Então, com uns 7 anos era o auge da inflação. Cheguei em casa e perguntei para os meus pais se tinha dinheiro para deixar na poupança e comprar um carro. Meus pais falaram que não. Eles sempre foram da política do “cresça e apareça”. Ali decidi que precisava guardar meu dinheiro.

Não é toda criança que reagiria assim…
A gente precisa modelar um pouco como os pais podem falar de dinheiro com as crianças. Há um receio de dizer não, medo de traumatizar os filhos. Conto no meu primeiro livro [Me Poupe!, Editora Sextante, 2018] que o melhor presente que meus pais poderiam ter me dado foi aquele não. Eles diziam: “Foi a melhor aluna da sala? Não fez mais que sua obrigação”. Eu queria uma boneca, um prêmio, e não uma resposta do tipo “Eu já estou pagando a escola, sua obrigação é ir bem”. Mas aquilo para mim sempre foi positivo.

E como passou a lidar com o dinheiro?
Lembro do dia em que o dinheiro guardado, em carteira, cofrinho, o que para mim era um bolo de dinheiro, de uma hora para a outra não valia mais nada. Virou um colecionável na minha gaveta [antes de completar 10 anos, ela viveu sob sete planos econômicos: Cruzado 1 (1986), Cruzado 2 (1986), Bresser (1987), Verão (1989), Collor I (1990), Collor II (1991) e Real (1994)]. Aí tive aquela epifania, uma grande decisão na minha vida, e passei a cuidar do meu dinheiro. Com o real, passei a guardar o que sobrava do lanche, e no Natal e aniversário, em vez de presentes, pedia dinheiro… Sempre digo que é uma pena que eu não tivesse conhecimento de taxa de juros naquela época — porque era uma época bem boa de taxa, né? Teria sido a criança mais rica que já existiu [risos].

A criança de ontem é a empresária de hoje?
Sempre fiz contas, mesmo quando fui cursar jornalismo. Tinha muito claro na minha cabeça de quanto precisava para comprar o carro aos 18 anos, o primeiro apartamento aos 23, à vista com 15% de desconto…

Mas para o jovem, na época de universidade, é preciso abrir mão de muitas coisas.
É justamente o que as pessoas têm muita dificuldade de fazer. O trade off [a escolha de algo em detrimento de outra opção]. O trade off do presente em relação ao do futuro. Comecei a criar mecanismos mentais para entender quanto aquilo que queria do presente era de fato relevante.

“O que as pessoas mais têm dificuldade de fazer é o trade off, a decisão de trocar algo do presente em relação a algo no futuro” (Crédito:Istock)

De qual investimento nunca abriu mão?
Na educação. Sempre foi algo essencial para mim. Nunca abri mão.

Isso permitiu um mergulho em alto nível no mundo das finanças, chegando a abrir mão de um bom emprego. Como foi?
Ganhava bem, mas trabalhava infeliz [fez carreira no SBT e na Record].

Foi quando decidiu ter um programa de finanças na TV aberta?
Sim. Pensei num reality com pessoas superendividadas se tornando investidores em quatro semanas. Sugeri em 2012. Eles gostaram tanto da ideia… mas deram para outra pessoa fazer.

Hoje você conversa com 25 milhões de pessoas. Como esse público se divide?
O mais amplo, YouTube, Instagram e outras redes sociais, é 55% mulher. No universo de alunos, 80% mulher. E dentro de cursos, a gente tem um recorte muito mais de classe A. Na Jornada da Desfudência, que tem 85 mil alunos, 55% são pós-graduados.

Dá para medir a eficácia dos cursos?
Quando criei a Jornada da Desfudência, trouxe duas pesquisadoras da USP para modelar uma pesquisa de impacto. Queria medir aumento de renda, diminuição de endividamento, diminuição de doenças correlatas, como depressão, ansiedade, cefaleia… Sou a doida dos números, então eu queria ter essa coisa da causa & efeito.

Me Poupe vai lançar um app em outubro. Do que se trata?
Nasce de uma dor nossa. Temos conteúdos gratuitos muito bons, com boa parte do que há nos conteúdos pagos. Mas o público médio tem muita dificuldade de ser o curador do seu próprio conteúdo. Por isso a gente também foi para esse mundo de cursos. Quanto mais estudava comportamento, mais entendia que às vezes as pessoas têm de pagar para ver valor e colocar em prática.

O que passou a excluir parte da população, justamente a sem grana e sem a formação?
Sim. Então eu preciso de um tipo de produto que tenha toda essa capacidade de mudança de comportamento. Que seja acessível para 100% da população brasileira, ou pelo menos para a população bancarizada com acesso à internet.

E como será o app?
É uma jornada em que a gente usa machine learning e inteligência artificial de maneira que consiga personalizar as interações. Dizer de onde tirar o dinheiro, para onde mandar, ajudar a pensar gastos por categorias.

Como ter você ao lado o tempo todo?
Isso. Tudo aquilo que eu ensino. Com o app, a pessoa não vai mais precisar ser educada financeiramente, vai ser naturalmente.

Vocês farão operações? Tipo, jogue R$ 100 aqui no Tesouro, ou fundos imobiliários?
O investidor só vai me permitir. Não fará mais nada. É a lei do menor esforço num produto feito para mudar a vida do ser humano. Será algo de impacto.

Como será feita a remuneração?
A gente vai ganhar se ele ganhar.

Nada mais?
Não estou oferecendo produtos com spread. Vai ter cartão, mas não vai ter a função crédito. Vamos trabalhar só com o recurso que a pessoa tem. E será uma experiência gameficada, feita para mudar não só a relação das pessoas com o dinheiro mas com todo o mercado financeiro.

Me Poupe vira banco?
É melhor do que isso, porque a gente não vai ser um banco. Banco se traduz em produtos de crédito. A gente vai estar acoplado diretamente no Open Finance. Aquilo que ninguém no mercado financeiro quer, porque sabe o risco que corre ao abrir os dados. Como vamos ganhar só se o usuário do app ganhar, a gente vai estar do lado da pessoa. Transformar cada um no seu próprio banco.

Num post no LinkedIn, você diz que sua empresa não quer ser unicórnio. “Apertei o F [para isso]… Minha empresa daria lucro no D+0 não no D+ sabe-se lá Deus quando.”
No ano pasado, nossa receita foi de R$ 80 milhões e a margem chegou perto de 40%. Para este ano, a projeção é R$ 100 milhões. Por causa dos investimentos, a margem deste ano deve ficar em 16%. Além do app, investi muito no staff, em trazer pessoas de um nível muito alto. Percebi que faltavam interlocutores [são cerca de 135 colaboradores]. O investimento no app é todo nosso. A gente já tem 400 mil pessoas na lista de espera, então vai valer muito mais no lançamento, e é 100% meu.

Qual sua pergunta decisiva ao contratar?
Quanto mais alto o nível mais comprovações de que aquilo já foi feito Cada vez menos olho para perfis analíticos e cada vez mais para perfis estratégicos e operacionais. Uma pergunta que faço a todos é: “O que define um bom dia de trabalho para você?”.

“Tá, teve deflação em julho. Mas não se pode esquecer que a inflação ainda é de quase 5% no ano e deve fechar em mais de 7% até dezembro” (Crédito:Evandro Leal)

Você planeja um IPO?
Hoje não faria sentido. Sempre acho que as coisas precisam fazer sentido. A gente está definindo nosso plano de 2025, então pode ser que de lá venha a necessidade de uma captação de recursos. Mas neste momento ainda não.

Isso também passa por um ponto evidente, que são os seus valores pessoais, não?
Sim, a gente fala sobre isso sempre. Eu nunca permiti nem patrocínio de banco. Essa é uma seleção que a gente está fazendo. Há uma lista de venture capital de impacto, a maioria de fora do Brasil, que teria convergência com aquilo em que acredito.

Você recentemente declarou que vivemos em um País que nos maltrata muito macroeconomicamente. O que precisa mudar?
Temos uma cultura do imediatismo e não é só a população. Ela começa nos tomadores de decisão e num ecossistema financeiro como um todo, inclusive para a maioria das empresas. Essa cultura do imediatismo sustenta a economia. É problema sistêmico. Tá, teve deflação em julho. Mas não se pode esquecer que a inflação é de quase 5% no ano e de mais de 7% até o final do ano — e eu não sou tão otimista assim. Vamos olhar para a nossa carga tributária. É muito legal dizer que tem PIB crescendo mais que dos outros, recuperação econômica, caixa do governo e tudo o mais quando um terço do PIB vem de arrecadação tributária. E quanto maiores os preços mais dinheiro entra. Isso é curto prazo.

Com efeitos de longo prazo…
Sim, porque é algo que corrói a capacidade de crescimento.

O que te levou a criar seu ecossistema?
Num momento importante no início do Me Poupe vi uma reportagem sobre violência doméstica. A maioria das mulheres nessa situação não consegue se livrar do relacionamento por causa da dependência financeira. Falei: “Eu preciso dedicar o resto da minha vida a fazer com que mais e mais pessoas tenham essa sensação de liberdade que eu tenho.” E tudo o que eu fiz desde então foi ancorado nessa missão.

Você já deixou seu legado?
Trabalho para deixar esse legado de liberdade. As pessoas não são livres enquanto não tiverem controle da vida financeira e sobre os próprios desejos. Ouço muito no Me Poupe que a gente devolveu esperança às pessoas. Gente que nos diz que “não conseguia mais sonhar, agora eu sei que posso”. Isso é liberdade.