10/07/2015 - 19:00
Como juiz de primeira instância, Fausto De Sanctis notabilizou-se, no final da década passada, por atuar em alguns dos maiores escândalos de corrupção do País. Em alguns deles, como o da Satiagraha, contra o banqueiro Daniel Dantas, do Opportunity, viu as provas serem questionadas e as sentenças revisadas por tribunais superiores. Mas a experiência acumulada o qualifica como uma referência no tema de combate à corrupção. Em seu gabinete, no Tribunal Regional Federal, na Avenida Paulista, o hoje desembargador falou à DINHEIRO sobre a lei anticorrupção e o papel das empresas no combate aos atos ilícitos.
Como o senhor avalia a atuação das empresas no combate à corrupção? É suficiente?
O dever de comunicar atos suspeitos foi uma das primeiras imposições para se colaborar com o Estado para o descobrimento de fatos ilegais. A partir daí, começaram a surgir outros instrumentos, como a delação premiada. O Estado se viu impossibilitado de combater o crime, e foi forçado a chamar essas pessoas, oferecer benefícios, cobrar uma colaboração, uma solidariedade legal imposta. O Estado impõe isso por uma questão de sobrevivência, fazendo com que outras forças de poder, que são lícitas, ganhem protagonismo. Quando o Estado sofre um colapso geral, vira vítima do crime organizado. Aí é que está o risco. É preciso recolocar-se como Estado e força, legitimado, para que forças paralelas não sejam atraídas por esse Estado fraco ao ponto de ser absorvido por uma situação de ilicitude geral.
Isso estava acontecendo? Ocorreu nos casos em que o senhor atuou e houve anulações?
Podemos dizer que há uma situação, sentida pela população, de que o Estado não está à altura dos desafios do crime organizado. Tem acontecido, historicamente, no Brasil a ausência de uma resposta estatal, de todos os poderes, com relação aos crimes econômico-financeiros, incluindo a corrupção. Eu testemunhei, na minha experiência profissional, casos em que os acusados eram ou agraciados com a prescrição, que é um instituto à parte no Brasil, dada a benevolência de tratamento, ou com uma redução de pena a um patamar que é incompatível com a resposta que deve ser dada. Não há nenhum efeito intimidatório. Ao contrário, os riscos da infração, da prática ilícita, da prisão, que seria o risco maior, é compensado com os efeitos das ações que são totalmente vitoriosas no final: grandes lucros e uma pena totalmente incompatível, que estimula a pessoa ao crime econômico. Alguns processos eram anulados por firulas processuais que só no Brasil ocorrem ou são reconhecidas com uma maneira muito benevolente para uma criminalidade econômico-financeira, que não é a mesma forma de interpretação do crime comum.
Houve alguma mudança? O caso recente, da Lava Jato, suscita uma percepção popular de que pode estar havendo mudanças…
Essa percepção de que pode estar mudando é fato. Também é uma percepção do Judiciário. Posso dizer que há uma percepção de aparente aperfeiçoamento institucional, de conscientização do papel do Judiciário em relação ao crime econômico. O que se espera, realmente, é que seja um passo a mais e não o que muitas vezes eu verifiquei, de dar um passo para frente e dois para trás, logo em seguida.
No caso Lava Jato, há esse risco?
Eu não posso falar de casos específicos. Mas acho que o Brasil não pode mais atuar como se fosse uma ilha. O Brasil muitas vezes vira de costas para o mundo. O cenário global é determinante para os nossos atos e edição das leis. Quando o País se omite, outras leis incidem no lugar. Isso é muito grave.
Que impacto as prisões de executivos de grandes grupos terá no modo de fazer negócios no País?
Aquele discurso de direito penal simbólico sempre foi uma justificativa para se evitar a prisão, para se evitar uma resposta proporcional à gravidade do crime. Quando isso é superestimado, acaba levando a uma desproteção sistêmica. O que quero dizer com isso: a prisão, em determinados casos e, nos casos de corrupção, é absolutamente necessária. Não sou eu quem diz isso. É o entendimento mundial. Dar essa resposta não pode ser tido como desproporcional. A corrupção exige a resposta contundente do Estado, de anunciar à população que isso é inaceitável. Não é como costumamos ouvir dizer, que o poder corrompe os homens. São os homens que corrompem o poder. Agora, a população começa a ver que não é um mar de rosas, onde se pode nadar de braçadas, como até então acontecia no País. Existe um poder que está falando: espera! Isso está errado.
O argumento das defesas é o de que há uma pressão para se firmar acordos de delação premiada e que a prisão reitera essa pressão.
A pressão psicológica estatal é legítima. Quando o Estado põe atenuante porque você confessou – e isso ninguém discute – é uma pressão psicológica. Quando o Estado diz: parcele o tributo e você vai ganhar um benefício legal, é pressão psicológica. Quando a lei estabelece que a pessoa condenada pode praticar a delação premiada e que isso vai reduzir a pena à metade e vai permitir uma progressão de regime, o Estado está fazendo uma pressão psicológica para que ela faça. Tudo com o objetivo da busca da verdade. O que se quer proteger é o bem jurídico, a moralidade administrativa, no caso da corrupção. Ou seja, a busca da verdade vai fazer com que a lei se aplique e que todos sejam a ela submetidos. A prisão exerce por si só uma pressão sobre a pessoa. Mas deve ser decretada não para fins de delação.
A responsabilização da empresa na lei anticorrupção é suficiente?
Antes, punia-se um diretor e isso não impedia que a empresa o substituísse e continuasse se valendo dos contratos públicos mediante corrupção. A responsabilidade da pessoa jurídica, pela qual o Brasil optou administrativamente, teria de vir. As empresas que agem indevidamente têm de ser responsabilizadas, para sentirem na carne uma punição proporcional à gravidade do delito. É diferente do que ocorria antes, atribuindo-se o fato a um funcionário ou laranja, que saía responsabilizado, enquanto a empresa seguia com ações delitivas e deletérias ao Estado.
A empresa enxerga risco econômico relevante?
As empresas estão preocupadas, porque a lei anticorrupção é contundente. Há respostas que vão até à dissolução da empresa. Não só isso, algumas podem estar colaborando com o Estado, mas a sua reputação pode ficar de tal forma arranhada pela atuação inconseqüente no passado, que podem, por si só, se inviabilizarem. Há algo de que não está se falando, que é a responsabilidade do conselho de administração. Quando se fala de responsabilidade objetiva da empresa, também podemos falar daqueles que colaboraram e votaram num determinado sentido. Não existe mais votar de qualquer jeito e depois falar que votou porque confiou em x, y ou z. A lei é um marco e, talvez por isso, incomode e já esteja sendo objeto de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI). O combate à corrupção, que sempre foi visto como algo que não é meu, é do Estado, parte agora do particular. Não há Estado honesto sem sociedade honesta.
Há quem sugira considerar a relevância econômica da companhia para o País, na hora de se apurar responsabilidade. Isso deve ser levado em conta?
Acho que não. Não existe progresso, aperfeiçoamento e evolução, sem ter sofrimento, sem drama, porque a vida é assim. Passamos por fases na vida em que temos de tomar decisões por força das experiências, que nem sempre são boas. O País precisa realmente ser passado a limpo e passá-lo a limpo significa ter a consequência necessária, nem que para isso custe alguns anos de dor econômica.
Por suas palestras no exterior, acredita que há uma visão de uma cultura de corrupção no Brasil?
Isso não é dito diretamente. Mas existe um problema estrutural de impossibilidade de combate à corrupção, porque ela é muito difusa, o que faz com que as empresas do exterior indaguem de forma temerosa como competir no mercado honestamente, já que existe esse sentimento, do próprio brasileiro, de que o País é muito corrupto. Há muita gente honesta no Brasil. Só que os honestos estão se sentindo diminuídos, dada a resposta insuficiente do poder estatal. E quando o Judiciário não dá a resposta, todos os demais ramos da sociedade se sentem inoperantes e hipossuficientes para combater qualquer coisa. Agora que o Judiciário parece estar querendo dar a resposta à altura, as pessoas começam a ficar motivadas a agir por conta própria, não só em relação ao governo, mas aos fatos cotidianos, que são os pequenos atos de corrupção que fazem o todo.