23/09/2022 - 3:20
São poucos os entrevistados que fazem você dar uma bela mergulhada na própria existência profissional. Olga Martinez é uma dessas pessoas. Nascida na Espanha, ela fez carreira no grupo Diageo e atuou profissionalmente na Inglaterra, na França, na Grécia e era sempre enviada a projetos em outros países, o que a tornou mais que uma poliglota, e sim uma pessoa verdadeiramente interessada em outras culturas. Sua formação em economia a fez caminhar primeiramente pelo mundo de finanças e gestão, até mesmo pela área de estratégia, mas onde se encontrou foi no marketing. E no Brasil, de onde comandou a operação latino-americana da Diageo e país que escolheu para viver. Ao deixar a gigante das bebidas, ela cofundou a Amélie Consulting, empresa especializada em fazer outras corporações se tornarem melhores, maiores e mais longevas. O diferencial é a busca por um propósito, como ela explica a seguir.
DINHEIRO – Se fosse para definir em poucas palavras o que faz a Amélie Consulting, o que você diria?
OLGA MARTINEZ – Não só no começo da consultoria, mas ainda hoje é difícil explicar. Depende muito da interlocução que encontramos nas empresas. Porque há diferença, por exemplo, quando tem gente que já está embarcada, que está numa onda de trabalhar propósito em consumo. No marketing, por exemplo. Mesmo assim, quando você fala ‘eu vou trabalhar propostas e estratégias a partir de um propósito’, a cultura a partir de um propósito, muita gente ouve isso e fala: ‘Nossa, adorei! Não faço ideia como vocês vão fazer, mas adoro a possibilidade de isso existir’.
Por que a dificuldade?
Porque o propósito é visto como se fosse um ente. É como se dissessem: ‘Vou criar um propósito, fazer uma comunicação interna e mando bala no resto’. E todo o restante continua igual.
E como vocês atuam?
A gente mudou isso para: eu vou fazer um propósito e é isso que vai guiar e mudar tudo. Vai mudar o que eu faço, e muito provavelmente o como eu faço e até o onde eu faço. Então é essa a nossa proposta. Que o propósito seja o centro de tudo. Isso no começo foi bem difícil, porque não é uma conversa que parecesse muito de negócio, sabe? Parecia um pedaço de cultura, um pedaço de marketing, uma coisa um pouco de abraçar árvore. Então foi bem difícil. Além disso, fomos inventando as nossas metodologias no que fazíamos. Obviamente com leituras, cursos, inspiração. E muito aprendizado de tantos e tantos anos de experiência. Mas incluiu também ganhar credibilidade em cima da nossa própria metodologia. Demora até provar que ela funciona.

Como é a essa metodologia?
Você ouve todo mundo, do fornecedor ao cliente e ao funcionário lá do chão da fábrica. Isso é fundamental, absolutamente necessário porque existe um ponto de partida nosso que a gente chama de arqueologia. Que é buscar as profundidades. A gente, por exemplo, lê os livros que os fundadores escreveram. No caso de muitas empresas familiares brasileiras os livros não foram feitos nem pelos fundadores, mas pelos filhos, ou pela terceira geração. Fazemos uma linha da vida desde o começo, trazendo todos os grandes momentos, e vai entrevistando gente que tem 30 anos de empresa, 30 dias de empresa, juntando todas essas experiências pra construir a essência e construir o propósito. Nosso processo tem um elemento muito importante que é trazer o passado e o incorporar com o futuro. E mostrar a importância na construção dos alinhamentos envolvendo dos sócios aos stakeholders.
Qual é a reação ao fim dessa etapa?
A gente faz uma devolutiva, momento importantíssimo do alinhamento, que chamamos de Mapa da Realidade. Quando a gente fala a palavra diagnóstico parece que diz se você está bem ou mal, se está certo ou está errado. E a nossa perspectiva é outra, é enxergar ‘onde estamos’. A gente monta esse mapa e fala ‘estamos aqui, e aqui está todo mundo’. A partir disso perguntamos: ‘Aonde queremos ir?’ É todo um trabalho de ressignificar os paradigmas da organização, até mesmo do modelo de negócio. E trazemos um monte de desafios. De crescimento, novos canais, novos produtos, mas também d descontinuidade de produtos ou serviços que não estejam mais alinhados ao propósito. De alguma maneira chacoalharmos os pilares que as pessoas têm sobre o que que está dentro e fora do negócio, o que vale e o que não vale.
Quem foram os primeiros convertidos, digamos, porque de certa forma foi uma catequese, não?
Os nossos primeiros clientes foram pessoas que confiavam muito na gente, que trabalhavam de alguma forma conosco e falavam, ‘ah, essa vai me ajudar a resolver’.
E qual a dor desses executivos e lideranças que os levava até vocês?
A frase sempre era a mesma: ‘Olha, eu estou com problema com o time… Preciso reestruturar como eu faço as coisas e não sei muito pra onde ir’. Aí a gente começava. Falava, fazia as entrevistas, daí iam surgindo os resultados. Então, os primeiros dois projetos foram assim. Daí foram surgindo recomendações.
Muito do DNA da Amélie Consulting está também em sua trajetória de conhecer e se interessar por variadas culturas, não?
É muito difícil de separar isso de mim porque acredito que quem eu sou hoje é completamente o resultado de toda essa experiência. Há dois ganhos, nisso. Um é a tranquilidade de estar em qualquer ambiente. Pode ser numa Kombi na Transamazônica, pegando gente que está lá pela estrada pra ir pra pros vilarejos, ou pode ser no board global de uma multinacional. Esse prazer que eu tenho não é só a capacidade de transitar, mas é um prazer de poder estar em ambientes completamente diversos e conseguir desfrutar todos eles.
De todas essas experiências, alguma te marcou mais?
O projeto de praticamente construir uma nova empresa [na compra da brasileira Ypióca pela Diageo]. Eram no total umas 3 mil pessoas. Tivemos de integrar as fazendas de cana com a fábrica. O fato de eu ir para o Ceará, na plantação de cana, subir no caminhão com a turma e almoçar com eles foi um processo muito rico para mim. Havia ainda desigualdades de gênero, já que as mulheres ocupavam apenas postos inferiores. Fizemos escolas para os funcionários. Alguns dos estudantes da primeira turma leram poemas que tinham escrito. Um contava que não tinha conseguido ler histórias para o filho porque ele não sabia ler e escrever, mas que estava conseguindo ler histórias para o neto.
Você já disse que com a pandemia as pessoas passaram a olhar o mundo de outro jeito. Por outro lado, que na questão da socialização a gente perdeu muito, especialmente com os mais jovens. O quanto isso pode refletir dentro das empresas?
Houve um certo desaprendizado. Eu queria juntar essas duas questões. De certa maneira essa humanização que a pandemia nos trouxe, que nos obrigou a refletir, entrou mais nas empresas. Mas minha pergunta é em relação a esse jovem que está um pouco mais atemorizado com a perda de socialização com essa transformação: ali há uma perda muito significativa.

O que seria preciso para atrair esse jovem?
Estamos ignorando a realidade que é a nossa incompetência de lidar com uma geração que tem valores diferentes dos nossos. Uma capacidade tecnológica que nós não temos. E um desapego do nosso modo de viver. Metade dos jovens não se enxergam trabalhando numa empresa.
Como lidar corporativamente com isso?
As culturas empresariais têm diferentes capacidades de adaptação ao novo, então existem empresas que claramente têm cultura muito mais humana e entenderam o que aconteceu. Num ponto de vista simples, para mim, é como está essa impressão de volta ao presencial. Há empresas que obrigaram todo mundo a voltar. Em outras, cada um faz o que quer. As empresas ainda vão entender o porquê da importância de flexibilidade dessa cultura.
Você fala de segurança psicológica das corporações. Do que se trata?
A gente vive um momento de fragilização e a questão é a seguinte: quando você tem um time, o que as pessoas podem falar, o que pensam, podem ser algo de vulnerável. Eu não estou me protegendo, me defendendo. Quando eu estou em segurança psicológica posso ser eu mesmo então eu posso dar o meu melhor. Na nossa metodologia buscamos entender onde está o time em relação a essa segurança psicológica, a essa capacidade de ser cada um. Quando não está nesse lugar você se defende, não fala dos erros.
Quais os reflexos dessa vulnerabilidade no ambiente de trabalho?
Aumentou 50% o consumo de antidepressivos na pandemia. Temos aí uma crise de saúde mental e as empresas não podem ignorar isso. Seria uma falta gravíssima até do ponto de vista de gestão e de responsabilidade empresarial você fingir que não é um problema seu como presidente de uma empresa. Porque isso vai te atacar do lado das pessoas e do lado do resultado igualmente.