12/12/2014 - 20:00
A ditadura que se instalou no Brasil no dia 1o de abril de 1964 tinha os generais no comando do Palácio do Planalto e dos principais gabinetes dos Ministérios e estatais. Mas tinha também seus bancos, suas construtoras, sua indústria automobilística, de alimentos e até de defesa. O relatório de mais de quatro mil páginas entregue pela Comissão Nacional da Verdade (CNV) à presidenta Dilma Rousseff, no Palácio do Planalto, em Brasília, na quarta-feira 10, mostra como a violação de direitos humanos tornou-se uma política de Estado durante o regime militar, responsável pela morte ou desaparecimento de 423 pessoas, entre 1964 e 1984.
O documento traz, ainda, os nomes dos 377 agentes da repressão responsáveis pelos crimes e mostra que havia um apoio empresarial civil ao governo militar. “Esperamos que esse relatório contribua para que fantasmas do passado doloroso e triste não possam mais se proteger das sombras do silêncio e da omissão”, disse a presidenta, que chorou ao lembrar os mortos pela repressão. Empresas brasileiras e filiais de multinacionais instadas no País participaram do golpe desde a sua preparação.
Instalado o governo militar, com o a posse do presidente marechal Castelo Branco, ajudaram a financiar centros de repressão, como a Operação Bandeirantes (Oban) e os DOI-Codi, verdadeiras usinas de tortura onde foram dizimadas dezenas de oposicionistas e militantes que lutavam contra o regime. “As empresas participaram ativamente da elaboração do golpe, e sabiam disso”, diz a advogada Rosa Cardoso, uma das seis integrantes da CNV e responsável pelos dois textos do relatório que mostram a participação e o comprometimento do setor privado na ditadura.
“Não foram enganadas pensando que era apenas uma mudança de governo.”(leia entrevista ao final da reportagem). Um dos grupos de trabalho coordenados por ela estuda as violações de direitos humanos dos trabalhadores, e contou com a participação de dez centrais sindicais que colaboraram com a coleta de documentos e informações. O outro texto trata, de forma mais abrangente, da colaboração dos civis e do empresariado. As páginas dedicadas ao apoio civil mostram que os simpatizantes e adeptos do novo governo foram recompensados, convidados a ocupar cargos importantes no governo, onde “passaram a criar políticas públicas e a delinear a reforma do Estado de acordo com os seus interesses”.
Com o Ato Institucional no 5 (AI-5), em 1968, um grande número de empresários passou a contribuir diretamente com a repressão, financiando a Oban, criada em São Paulo para “identificar e localizar os elementos integrantes dos grupos subversivos”. Entre os patrocinadores do órgão de repressão, o relatório cita o Banco Mercantil de São Paulo, o Bradesco, além de empresas como Grupo Ultra, Ford, General Motors, Volkswagen, Camargo Corrêa, Objetivo, Folha de S.Paulo, Nestlé, General Electric, Mercedes Benz, Siemens e Light. As contribuições eram arrecadadas nas reuniões na sede da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp).
Questionado sobre o assunto, o atual presidente da Fiesp, Paulo Skaf, disse que nada consta nos arquivos da entidade. “Gastar energia com algo que aconteceu há 50 anos pode não ser o melhor para o País”, afirmou. A Camargo Corrêa defende-se, alegando que as informações são improcedentes, a GE afirmou desconhecer o caso e a Nestlé diz não ter documentos internos ou registros sobre esses fatos. A Volkswagen afirmou que investigará eventuais participações de funcionários no repasse de informações ao regime. As demais não comentaram. A Petrobras, que colaborou entregando os arquivos daquela época, era uma empresa militarizada e tinha um sistema de monitoramento dos funcionários descrito no relatório como “exemplar”.
A Comissão Nacional da Verdade mostra que entre os empresários houve quem resistisse ao golpe. E, da mesma forma que premiou os amigos, o governo militar soube asfixiar financeiramente os opositores. Um exemplo é o dos empresários Mario Wallace Simonsen e Celso da Rocha Miranda, donos da Panair do Brasil. A suspensão das licenças de voo da então maior companhia aérea brasileira levou-a à falência, em benefício da Varig. A ação do governo fez a dupla de empresários, que defendia a democracia, perder outros negócios.
Trinta anos depois, a dependência que as empresas têm do governo ainda é grande, na avaliação do cientista político Ricardo Caldas, ex-diretor do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares (Ceam), da Universidade de Brasília (UnB). “Se no governo militar a regra era não contratar comunista, agora se espera que as empresas façam relatórios sociais, doações de campanha”, diz Caldas. “Mudam as expectativas, mas elas têm de ser atendidas.” A diferença é que, hoje, relações impróprias entre governo e empresas podem ser denunciadas e são até investigadas, como prova a Operação Lava Jato, que apura os esquemas de corrupção na Petrobras.
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“Houve cumplicidade das empresas”
A advogada Rosa Cardoso, responsável por investigar a participação das empresas na ditadura, diz que elas podem ser condenadas a pagar indenizações em ações movidas pelo Ministério Público
Como foi a participação das empresas no regime militar?
Elas participaram ativamente da elaboração do golpe, e sabiam disso. Não foram enganadas, pensando que era apenas uma mudança de governo. Prepararam um golpe, financiando entidades como o Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (Ipes) e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad). Depois se beneficiaram com a criação de uma indústria bélica no País e financiaram mecanismos de repressão, como a Oban e os DOI-Codi.
As empresas foram cúmplices da ditadura?
Havia uma cumplicidade entre essas empresas citadas no relatório e os agentes do Estado. Elas monitoravam os trabalhadores, faziam listas negras. Houve favorecimento dessas empresas, criação de grandes empreiteiras que estão aí até hoje. Ao mesmo tempo, tivemos falências, como as da Panair. Mas tudo o que colocamos no relatório é apenas uma amostra, porque tivemos pouco tempo para pesquisar.
O que acontece agora?
Além da responsabilização criminal de quem cometeu os crimes, é possível a responsabilização civil das empresas, mesmo que os responsáveis não estejam mais lá. A documentação foi entregue ao Ministério Público, que pode abrir ações coletivas pedindo indenização.
Colaborou: Carolina Oms