Era por volta da meia noite de uma segunda-feira 15 fria e chuvosa no Rio de Janeiro, quando Thiago Braz fez um salto que entrou para a história do atletismo brasileiro. Ao alcançar a marca de 6,03 metros, o jovem atleta de 22 anos, natural de Marília, interior de São Paulo, ganhava a medalha de ouro no Estádio Nilton Santos, onde estavam sendo realizadas as provas. Poucas horas depois, no dia seguinte, um senhor de 100 anos cujo nome de batismo é Jean-Marie Faustin Goedefroid Havelange, mas que ficou conhecido mundialmente como João Havelange, morria de complicações pulmonares no Hospital Samaritano, no Rio de Janeiro. O nome do ex-presidente da FIFA, que chegou a batizar a arena onde Thiago brilhou, não estava mais estampado em nenhum lugar das dependências esportivas. Não há mais nenhuma referência ao ex-cartola que já foi o homem mais poderoso do futebol mundial, mas que vivia no ostracismo na última década por conta de seu envolvimento com escândalos de corrupção que mancharam não só a sua biografia, como também a entidade global que comanda o nobre esporte bretão.

Havelange morreu sem pompa e afastado das entidades esportivas que ele ajudou a transformar em potências globais, como a própria FIFA, onde foi presidente de 1974 a 1998, e do Comitê Olímpico Internacional (COI), no qual foi dirigente por quase cinco décadas. O presidente interino Michel Temer, em nota oficial, escreveu que o “esporte mundial perdeu hoje um dos seus mais expressivos líderes.” Já seu sucessor na FIFA, Joseph Blatter, suspenso da instituição em 2015, declarou que “Havelange tinha uma ideia na cabeça que era fazer do futebol um jogo global e ele conseguiu isso”. O COI mostrou indiferença e se recusou a hastear sua bandeira oficial, com os aros olímpicos, a meio mastro. A entidade, porém, aceitou pedido do Comitê da Rio 2016 para que a bandeira do Brasil ficasse a meio mastro nas instalações dos Jogos Olímpicos do Rio, na qual Havelange foi personagem importante para que a cidade ganhasse a disputa contra Chicago, Tóquio e Madri.

Durante os 20 anos em que comandou a FIFA, Havelange criou as condições para que a entidade se transformasse em uma potência global. Em 1974, a dona do futebol mundial estava quebrada, com apenas US$ 20 em caixa. Em 2014, quando organizou a Copa do Mundo no Brasil, faturou mais de US$ 2 bilhões. O lucro alcançou US$ 141 milhões. Nos últimos 10 anos, os ganhos estão perto de US$ 1,4 bilhão, segundo um levantamento da consultoria BDO Brazil. “Havelange foi um revolucionário”, diz Pedro Daniel, responsável pela área de esporte da BDO Brazil. “Ele é o maior dirigente da história do esporte.” As fontes de receita, que estavam limitadas às bilheterias, se multiplicaram com a inclusão de licenciamento e, principalmente, patrocinadores e venda de direitos de transmissões da Copa do Mundo. Em 1982, na Espanha, a FIFA ganhou apenas US$ 23 milhões com os diretos de transmissões. Em 2014, no Brasil, a cifra foi multiplicada por 100: US$ 2,4 bilhões.

Quando deixou o comando da entidade aos 82 anos, Havelange acreditava que viveria uma aposentadoria tranquila, colhendo os louros de sua gestão à frente da FIFA. Blatter era homem de sua confiança. E seu então genro, Ricardo Teixeira, que comandava a CBF, começava sua carreira na entidade. A partir daí, no entanto, os problemas se multiplicaram. A ISL, empresa de marketing da FIFA, quebrou com dívidas milionárias e sob acusações de desvio de dinheiro. Havelange negou ter se beneficiado do esquema. Em 2009, no entanto, pagou 5,5 milhões de francos suíços à Justiça para evitar que seu nome fosse revelado em processo que investigava a empresa. Dois anos depois renunciou ao COI com medo de ser banido. Deixou também cargo de presidente de honra da FIFA em 2013. Um ano antes, havia sido formalmente acusado de receber propinas por um Tribunal na Suíça. “Ele era um visionário que percebeu a força global do futebol, mas que não fez só coisas boas”, afirmar o consultor Amir Somoggi. Em maio do ano passado, sete dirigentes da FIFA foram presos na Suíça, entre eles José Maria Marin, ex-presidente da CBF, que atualmente cumpre prisão domiciliar nos EUA. O atual presidente da CBF, Marco Polo Del Nero, não deixa o Brasil por medo de ser preso. São os últimos suspiros da era Havelange, que desaparece lentamente.

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Da glória ao ostracismo

1916
Nasceu em 8 de maio de 1916, no Rio de Janeiro. Filho de um comerciante de armas belga, ele foi registrado como Jean-Marie Faustin Goedefroid Havelange

1936/52
Disputou as Olimpíadas de 1936, em Berlim, como nadador, e a de 1952, de Helsinque, na equipe de polo aquático

1962
Passou a ser integrante do Comitê Olímpico Internacional em 1962, cargo que manteve por quase cinco décadas

1974/98
Assumiu a FIFA e transforma o futebol em um esporte global

2001
A ISL, empresa de marketing da FIFA, quebra com uma série de acusações de desvio de dinheiro. Havelange nega ter se beneficiado do esquema

2009
Pagou 5,5 milhões de francos suíços à Justiça para evitar que seu nome fosse revelado em processo que investigava a ISL

2011
Renunciou ao COI temendo ser banido da entidade pois era investigado por supostamente receber uma propina de US$ 1 milhão da ISL

2012
Supremo Tribunal da Suíça revelou que Havelange recebeu propinas milionárias na venda de direitos de transmissão de competições da FIFA 

2013
Em 2013, renuncia ao cargo de presidente de honra da FIFA