O sentimento de intranquilidade, que impera na Argentina sob a liderança da presidenta Cristina Kirchner, ficou mais agudo na semana passada. A notícia de que a líder peronista precisaria se afastar por um mês para tratar de um hematoma que vinha pressionando seu cérebro aumentou a apreensão entre os argentinos. Uma intervenção cirúrgica foi necessária para eliminar um coágulo, que se formou depois de uma queda, no fim de agosto. Uma pesquisa divulgada pelo jornal Clarín, o mais importante do país, revelou que a pausa obrigatória da mandatária por conta da cirurgia, realizada na terça-feira 8, deixou 53,4% dos entrevistados “intranquilos” e outros 28,9% “muito intranquilos” com o futuro do país. 

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Fora de cena: afastada por um mês, Cristina deixa o posto para

o vice Boudou, que é tema de chacota nacional

 

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Se o governo parece ruim com ela, ficou muito pior sem ela. O vice de Cristina, Amado Boudou, que assumiu a Casa Rosada interinamente, só veio aumentar o ceticismo da população com o governo Kirchner. Boudou está arrolado em 24 processos na Justiça por suspeita de enriquecimento ilícito, fraude e corrupção, entre outros crimes que jogaram a sua credibilidade para os confins da Patagônia. “Hoje, os argentinos estão angustiados, não só pela doença da presidenta, que não parece ser tão grave e só requer repouso, mas pela situação do país, nas mãos de quem fica”, disse a ex-senadora Hilga Duhalde, mulher do ex-presidente Eduardo Duhalde.

 

 

 

Ex-queridinho de Cristina – ele chegou a ser apontado como seu sucessor num eventual terceiro mandato dos peronistas –, Boudou caiu em desgraça no ano passado, depois das denúncias de que teria favorecido a gráfica Companhia de Valores Sul-Americana numa licitação da Casa da Moeda. O dono da gráfica, Alejandro Vanderbroele, seria testa de ferro de Boudou. Perdeu, assim, espaço no coração do governo, e virou alvo nacional de chacotas. Seu comportamento “rock and roll”, de cabelos desgrenhados, e fotos de beijos ousados com a namorada, a jornalista Agustina Kumpfer, publicadas na mídia, também ajudaram a criar a fama de uma pessoa frívola, descomprometida com os problemas nacionais e desconectada de seu papel político.

 

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Alheio aos críticos, Boudou assumiu interinamente na segunda-feira 6, garantindo que fará o que a sua comandante deseja: “manter o projeto que Néstor Kirchner começou e que Cristina deu continuidade”. Se, de um lado, a frase do presidente interino revela a lealdade aos princípios kirchnerianos, por outro, mostra que a fonte permanente da desconfiança dos argentinos continua aberta. As estatísticas sobre a economia, produzidas pelo instituto oficial Indec, equivalente ao IBGE brasileiro, são completamente descoladas da realidade. Para o governo, a inflação anual não passa de 10,3%. Mas as consultorias privadas apontam para uma alta dos preços de 25% (leia o quadro “Mundo Paralelo”). 

 

 

Por outro lado, a equipe econômica de Cristina divulgou um PIB de 5,7% no primeiro trimestre deste ano, quando as consultorias apontaram para um incremento de não mais que 3% no mesmo período. “Se a inflação é subestimada e o crescimento da atividade é superestimado, o PIB fica distorcido”, diz o economista Dante Sica, presidente da consultoria Abeceb.com, de Buenos Aires. A falta de credibilidade é tamanha que até o relatório divulgado na semana passada pelo FMI, sobre o crescimento das economias latino-americanas, considerava um crescimento de 3,5 % do PIB argentino neste ano, enquanto nas contas do governo a expectativa é de uma expansão de 6,2%. 

 

 

 

“Os erros nos números da inflação distorcem tudo, incluindo os cálculos da cesta básica e até os dados de pobreza”, diz Facundo Martinez, da M&S Consultores, de Buenos Aires. Pelas estatísticas oficiais, um argentino precisa de seis pesos diários, ou US$ 0,50, para comprar sua cesta básica mensal. Os cálculos da M&S, no entanto, apontam para uma necessidade de 24 pesos diários. Martinez lembra que até 2008 os cálculos levantados por sua consultoria ficavam sempre em linha com as estatísticas oficiais, diferenciando-se apenas por números decimais. “Mas eles alteraram a metodologia e acusaram as consultorias privadas de tergiversar a realidade”, diz. 

 

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Abuso de poder: A batalha jurídica contra as consultorias privadas, promovida

pelo secretário do Comércio, Guillermo Moreno, continua

 

A queda de braço com os economistas acabou parando na Justiça, com a cruzada liderada pelo secretário de Comércio Interior, Guillermo Moreno. Onze consultorias foram processadas desde 2011, entre elas a Abeceb e a M&S, por supostamente violarem a lei de “Lealdade comercial” e foram proibidas de divulgar seus relatórios. O grupo, por sua vez, entrou com uma denúncia na Justiça contra Moreno por abuso de poder. No mês passado, os juízes deram ganho de causa, em primeira instância, à ação das consultorias, mas o secretário voltou à carga e recorreu da decisão. 

 

 

 

O fato é que as donas de casa que frequentam os supermercados sabem quem está falando a verdade. “A pobreza e a inflação são vistas a olho nu”, ironiza Martinez. Diante de um governo que adquiriu os hábitos do personagem Pinóquio, até mesmo a notícia da internação da presidenta deixa dúvidas no ar sobre a real gravidade. Se, em 2010, a viuvez de Cristina sensibilizou os argentinos, que a premiaram com a reeleição no ano seguinte, desta vez, sua doença não parece produzir efeitos. 

 

 

 

 

Pesquisas divulgadas na semana passada mostram que mais de 60% dos entrevistados não vão mudar de posição para as eleições legislativas do próximo dia 27. E o partido de Cristina tem a preferência de não mais que um terço do eleitorado. “Quando foi eleita, ela venceu com 54% dos votos, ou seja, perdeu um grande capital político em pouco tempo”, diz Orlando Ferrerez, que já foi vice-ministro da Economia. Apesar das perspectivas pouco favoráveis, a presidente ganhou um alento na quinta-feira 10, quando o Congresso prorrogou a lei que amplia os seus poderes. 

 

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Criada durante o governo de Eduardo Duhalde, em 2002, quando o país estava à beira do precipício, a legislação especial garante à mandatária elevar impostos, ou modificar o orçamento, sem consultar o Legislativo. Desta forma, ela poderia aumentar os gastos públicos, ganhando fôlego diante de um cenário de poucas alternativas. Mas, para alguns desafios não existe mágica. Assim como nos contos infantis, as mentiras têm pernas curtas e abreviam os reinados baseados na ficção.