05/11/2021 - 11:45
Socialista, comunista, fascista, alienado, fisiologista, estatista, populista. Os donos dos 312 votos que ratificaram a PEC dos Precatórios na madrugada de quinta-feira (4), em um exercício de democracia distorcida na Câmara dos Deputados, podem ser chamados de muitas coisas, menos liberais. Articulada pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) em tempo recorde, a votação do texto que empurra R$ 91,6 bilhões em gastos para cima do limite fiscal é um excelente exemplo de como se relacionam, e onde se interligam, o Legislativo e o Executivo brasileiro. Muito mais do que corrigir um eventual problema da régua fiscal aprovada em 2016, ou sustentar o Auxílio Brasil, o acordo que colocou do mesmo lado partidos como o PDT e o PSL, teve apoio de boa parte do PSDB e PSB, além de incluir grande parte do Centrão escancara que a maioria dos 382 deputados que se declaram liberais ou progressistas não o são. E se eles pensam que essa conta vai cair apenas no colo do contribuinte, é bom que o Executivo e o Legislativo se preparem, porque, como diriam os boêmios cariocas, “o mal do malandro é achar que só a mãe dele faz filho esperto”.
A articulação no Congresso da PEC é o suco do Frankenstein democrático em que o Brasil se enfiou. Um número absurdo de partidos políticos com mais semelhanças que diferenças, com uma porção de ideologias genéricas encomendadas e que — por nunca ser cobrada pelos próprios partidos e eleitores — dá carta branca para o parlamentar orbitar a estrela que quiser. E se o próprio sistema é viciado em recursos, é evidente o porquê de o fio que une partidos “ideologicamente diferentes” serem as emendas parlamentares (em ano eleitoral). E Bolsonaro, que até agora não conseguiu grandes proezas em seu governo, jogou luz nesse esquema. Deixou claro que a única arma do Executivo para governar é liberar recursos. Doa a quem doer. O governo precisava de dinheiro para bancar o novo Bolsa Família e custear a agenda positiva do presidente Bolsonaro em ano eleitoral. No Congresso, havia um interesse enorme nas benesses do recurso extra, que seriam escoados por meio de emendas parlamentares. Em especial as do relator do Orçamento, sem lastro nem destino certo. Mas, se o tema for colocado em votação pela ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) Rosa Weber provavelmente será considerado inconstitucional.
Mas os benefícios não param por aí, e os executivos estaduais e municipais também ganham seu pedaço do bolo. Aos governadores, a política do “sem teto, o céu é o limite” (como têm bradado alguns parlamentares em tom jocoso em Brasília). Há um benefício direto que em nada se relaciona com os precatórios, mas alivia as contas estaduais, a chamada securitização da dívida. Na prática, significa que uma dívida ativa dos estados com a União poderá ser negociada com investidores, por um preço menor do que vale inicialmente. “É uma perversa engenharia financeira, a qual grande parte das receitas estatais não chegará aos cofres públicos, pois é desviada durante o seu percurso pela rede bancária”, disse Maria Lucia Fattorelli, coordenadora nacional da Auditoria Cidadã da Dívida. Segundo ela, apesar de parecer uma solução para os créditos incobráveis de Dívida Ativa, o esquema gera uma nova dívida, que passa a ser paga por fora dos controles orçamentários e, portanto, de forma menos transparente. “Como se fosse um empréstimo ‘consignado’, desviando os impostos pagos pela sociedade”, afirmou. Há grandes chances dessa ferramenta ser questionada no STF. Mas até que alguma decisão seja tomada, o estrago já foi feito.

Outro trecho sem qualquer relação com os precatórios, mas que ajuda outra esfera do Executivo é o refinanciamento de dívida dos municípios. Segundo o texto, os prefeitos poderão pedir extensão para até 240 meses de dívidas obtidas até o dia 31 de dezembro. Carlos Santana, advogado tributarista especializado em Refis e Securitização, faz o alerta. “Há uma contradição gigantesca nessa PEC, porque ela vai criar o vício de ‘resolver as dívidas’ no futuro.” De acordo com ele, não é diferente do que fazem muitas empresas, que param de pagar suas dividas (ou acumulam novas sem a pretensão de pagar) esperando pelo próximo ciclo de Refis. “Essa conta vai voltar e vai sair caro para a União”, afirmou. Além disso, essa imprevisibilidade na arrecadação é um veneno para a economia, o que pressiona a inflação e prejudica o crescimento.
BOCA A BOCA Lá nos corredores do Congresso Nacional, o clima depois da sessão, que terminou às 2h da madrugada era de satisfação de parte dos parlamentares. Lira disse que o Parlamento “fez o bem para a população mais pobre”, como se a PEC fosse a única alternativa para custear o novo Bolsa Família. Horas mais tarde o tom de lamentação cresceu entre os partidos de oposição. Por ironia, PCdoB, Rede e Novo (com ideologias notadamente distintas) foram os únicos partidos com 100% de sua bancada contra a PEC 23. O PT também teve todos os presentes votando contra. Mas em outras legendas a história foi outra. Alessandro Molon (PSB-RJ), que é líder da oposição na Câmara, afirmou que foi grande a frustração do partido com os 10 votos favoráveis ao texto dentre os 32 da bancada. Segundo ele, é possível reverter esses votos no segundo turno e o partido estuda como lidar com os traidores. “Nós mesmos, do PSB, já deixamos claro que se o governo colasse uma MP para um crédito suplementar no valor do Auxílio Brasil, nos votaríamos a favor”, disse ele.
Quem também se mostrou bastante frustrado com a própria legenda foi o presidenciável Ciro Gomes, do PDT: 15 dos 24 parlamentares de seu partido votaram a favor do texto. Em uma rede social, Ciro disse que manterá sua pré-candidatura à presidência em suspenso até que o partido reveja sua posição. “Votar a favor da medida é compactuar com o bolsonarismo”, escreveu. “Justiça social e defesa dos mais pobres não podem ser confundidas com corrupção, clientelismo grosseiro, erros administrativos graves, desvios de verbas, calotes, quebra de contratos e com abalos ao arcabouço constitucional.”

“A frustração com os deputados do PSB que votaram a favor da PEC foi grande. Vamos reverter” Alessandro Molon, líder da oposição (PSB-RJ).
Enquanto a oposição bate cabeça, as copeiras do Palácio da Alvorada já encomendaram mais café. Bolsonaro já vem recebendo visitantes de olho no cheque em branco que deve receber. Além dos políticos, a lista de candidatos potenciais aos recursos cresce a olhos vistos. Policiais militares e civis esperam o aumento prometido. Ruralistas falam de adubar o crédito para as empresas do setor. Caminhoneiros pleiteiam um fundo que segure os preços do combustível ou um vale diesel. Evangélicos oram pela bênção de cargos no governo. Militares combatem por mais um reajuste. De malandro esperto, Brasília está cheia.