27/05/2016 - 17:15
Na tentativa de traduzir o nó das contas públicas de forma simples, um grupo de economistas passou a alertar nos últimos anos que a Constituição não cabe no PIB. Trata-se de um diagnóstico de que o ritmo de avanço das despesas estatais – boa parte instituída pela Carta Magna de 1988 – superou a capacidade de o País gerar riquezas, o que sugere o risco de uma insolvência futura. A crise econômica antecipou esse temor para o presente, gerando uma desconfiança que hoje contribui para aprofundar a recessão.
“A menos que uma agenda extensa de reformas seja iniciada, com a reversão da trajetória de aumento do gasto público, o Brasil estará condenado, na melhor das hipóteses, a uma longa estagnação”, alertou Mansueto de Almeida, em artigo sobre o tema em meados do ano passado. Sentado na primeira fileira do Palácio do Planalto, Almeida, hoje membro da equipe econômica, viu suas palavras saltarem o papel na fala do Ministro da Fazenda, Henrique Meirelles. Com uma diferença fundamental: a ordem invertida das propostas, primeiro sinalizando a reversão de alta dos gastos, para depois apresentar as reformas que levarão a esse resultado.
O pacote econômico do governo Michel Temer, anunciado na terça-feira 24, é ao mesmo tempo ambicioso e genérico, num simbólico pragmatismo político. Trata-se de uma tentativa de acenar ao mercado e apresentar o nível do desafio ao Legislativo, a quem caberá a aprovação das medidas impopulares que virão em seguida. A regra estabelecida para conter o crescimento desenfreado das despesas institui como teto o índice de inflação do ano anterior. Em 2017, por exemplo, os gastos só poderão crescer 7% (nível estimado da inflação para este ano).
Como a expectativa é que a inflação recue para 5,5% no próximo ano, a nova fórmula ainda dá margem, na prática, a um aumento de 1,5%. A inversão de tendência deve se dar de forma gradual, à medida em que a inflação caminhe para o centro da meta (4,5%) e o PIB volte a crescer. A previsão é alcançar uma redução de até 3% do PIB em três anos. Desde 1997, a despesa pública avança a uma média de 5,8% ao ano, em termos reais. Na maior parte do período, porém, a trajetória acabou encoberta por um crescimento das receitas, via aumento de impostos, expansão econômica e um processo de formalização da economia.
O descasamento na dinâmica ficou evidente nos governos da presidente Dilma Rousseff, quando o crescimento perdeu força e os gastos se aceleraram. De 2011 até março deste ano, as despesas cresceram 23%, enquanto a receita caiu 3%. O resultado foi uma reversão na trajetória de queda da dívida pública, que pode chegar a 90% do PIB em 2020, segundo os cálculos do Fundo Monetário Internacional (FMI), caso mantida a tendência observada até então. “Era uma panela de pressão que estava prestes a explodir”, afirma Sérgio Vale, economista-chefe da MB Associados. “Não é que o Temer vá fazer milagre, mas a sensação de paralisia parou, o desastre foi evitado.”
Meirelles deixou claro que terá como prioridade reverter o crescimento da dívida. Pelo lado da receita, o espaço é curto. A carga tributária aumentou quase sete pontos percentuais nos últimos 20 anos, para 32,7%, bem acima da média da América Latina (21,7%) e próximo dos países desenvolvidos (34,4%). Resta olhar para o tamanho da máquina pública. O tema vinha sendo evitado ao máximo, pois implica em decisões impopulares. Logo após assumir o cargo, no governo Dilma, o então ministro da Fazenda, Nelson Barbosa, enviou ao Congresso um projeto de teto para os gastos sem prever, porém, qual seria o cálculo para o limite.
Além de avançar na conta, a nova equipe já indicou que será preciso alterar a regra de vinculação constitucional de receitas para saúde e educação. Como o mínimo previsto para as duas áreas atualmente é de 33% do Orçamento, se as receitas sobem, os gastos avançam na mesma proporção. “É fundamental que as despesas de saúde e educação sejam parte desse processo de mudanças das regras de crescimento das despesas públicas”, afirmou Meirelles. A medida foi criticada por instituições ligadas às duas áreas e pela própria presidente afastada.
“O impacto na educação é muito grave”, afirmou Dilma. “Se tivesse sido adotada nos últimos dez anos de governo, a medida proposta de ajustar os recursos para educação e saúde pela inflação do ano anterior, nós teríamos tido uma perda da ordem de R$ 500 bilhões.” Os detalhes de como se dará a nova dinâmica integrarão uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC), a ser enviada ao Congresso nas próximas semanas. Será a grande prova de fogo do governo Temer no Legislativo, já que sua aprovação requer no mínimo 2/3 dos deputados e dos senadores.
Uma primeira batalha em Brasília foi vencida, na quarta-feira 25, com a aprovação da nova meta fiscal, que autoriza um déficit de R$ 170,5 bilhões (2,7% do PIB) neste ano, numa sessão de mais de 16 horas (veja reportagem aqui). O maior esforço da articulação política talvez tenha de ser reservado para a reforma da Previdência. O primeiro texto será apresentado nos próximos dias e deve trazer pontos como a fixação de uma idade mínima, mudança essencial para garantir o cumprimento do teto de despesas no futuro.
Questões como a desvinculação de benefícios assistenciais da regra do salário mínimo, previstas pelos analistas e ainda não confirmadas por Meirelles, seguem como dúvida. No geral, a percepção do mercado foi positiva, mas um otimismo mais firme depende do detalhamento da PEC e das demais propostas. “O que importa é o diagnóstico correto e o desenho geral das medidas”, diz Alessandra Ribeiro, da Tendências Consultoria. Na visão do governo, as medidas devem ajudar a afastar o risco de insolvência das contas estatais e estimular a confiança de consumidores e empresários, para que voltem às compras e destravem investimentos.
“Um dos grandes problemas da economia brasileira tem sido a pouca previsibilidade e as surpresas negativas, então precisamos de decisões de longo prazo que sejam consistentes e sustentáveis”, disse Meirelles. “A partir daí, os mercados antecipam os movimentos e a retomada da confiança é rápida.” Alguns índices de confiança já vêm mostrando uma melhora com a esperança provocada pela troca de governo. O impulso inicial ganhou força extra com a formação do “time dos sonhos” na equipe econômica.
“Eu gostei muito das nomeações, começando pelo Meirelles e passando pelos secretários e pelo presidente do Banco Central”, diz Pedro Celso Gonçalves, presidente da Associação Paulista de Supermercados (Apas). A MB Associados já trabalha com a possibilidade de crescimento de 2% em 2017, ante 0,6% previsto desde o ano passado, quando o impeachment foi incorporado ao cenário – com Dilma, a expectativa é de queda de 2,5%.
A retomada é essencial para garantir a recuperação das receitas públicas e a obtenção de um superávit primário. Se tudo correr como previsto, o governo poderia voltar ao azul em 2018, com um superávit simbólico, próximo de 0,3% do PIB, segundo as contas da Tendências. Enquanto trabalha com as novas medidas no Congresso, o governo atua com uma agenda paralela de composição de receitas. Cerca de R$ 100 bilhões serão antecipados pelo BNDES ao Tesouro nos próximos três anos, para abater da dívida pública. Outros R$ 2 bilhões serão levantados com o fim do Fundo Soberano.
Novas desonerações serão congeladas e haverá um esforço para aprovar dois projetos que já tramitam no Legislativo: o que desobriga a Petrobras a ter participação nos investimento do pré-sal, de autoria do senador José Serra (PSDB-SP), hoje ministro de Temer, e outro que trata da governança nos fundos de pensão e nas estatais, de Aécio Neves (PSDB-MG). Ainda por vir estão rodadas de concessões de infraestrutura e de privatizações. Por ora, Meirelles vem descartando alta de impostos, mas já deixa escapar que uma alternativa poderia ser a revisão de subsídios. Tudo para que o PIB volte a crescer e a Constituição caiba nele. Na prática, é o Estado desinchando.
—–
“O rombo de R$ 170 bilhões assusta”
O presidente do Grupo Iguatemi, Carlos Jereissati Filho, diz à DINHEIRO que as expectativas começam a melhorar
Como resgatar a confiança do consumidor?
Melhorando os índices mais importantes da economia. Ao reduzir a taxa de desemprego e ao baixar os juros, aumenta a capacidade de consumo. As pessoas ficam mais confiantes no futuro. É o clássico da economia.
O novo governo Temer já melhorou as expectativas?
Dá para sentir uma reversão nas expectativas, mas ainda é uma melhora muito pequena.
O que o sr. achou da nova equipe econômica?
Gostei bastante.
E da nova meta fiscal?
O rombo de R$ 170 bilhões assusta porque, na prática, é o cidadão comum que terá de pagar essa conta. Então não adianta nada ele ganhar em alguns anos se depois ele terá de perder tudo isso. Isso não é uma vitória. As pessoas precisam entender que esses discursos fáceis de que a pessoa ganha por algum tempo e perde muito lá na frente não tem valor algum. Essa é a nova realidade.
Daí a necessidade das reformas…
Sim, das reformas e da evolução contínua. Os problemas mudam. Há 20 anos, as pessoas não viviam 80 anos. Não mudar regras quando as coisas mudam é persistir no erro. Esse erro será cobrado em algum momento. É uma questão de matemática e não uma questão de vontades.
—–
Como eles quebraram o Brasil
É provável que a nova conta do rombo deixado pela presidente Dilma Rousseff esteja um pouco inflada, com uma margem de segurança para garantir que o resultado fique dentro da meta de déficit de R$ 170,5 bilhões, quase o dobro do projetado pelo ex-ministro da Fazenda, Nelson Barbosa. No mercado, as projeções indicavam algo próximo de R$ 150 bilhões. A diferença é uma questão menor ante a envergadura do déficit, considerando que, até 2013, o País fazia um superávit razoável (R$ 91 bilhões). Como as coisas mudaram tão rápido? Na verdade, nem tão rápido.
Boa parte da conta que hoje estufa o déficit contempla distorções escondidas no passado, como as pedaladas fiscais, recursos de responsabilidade do Tesouro que vinham sendo bancados por bancos públicos. Em 2015, o governo foi obrigado a pagar quase R$ 100 bilhões pela conta antiga. Desonerações concedidas sem o debate sobre a real eficácia, como a da folha de pagamentos, aprofundaram o buraco. Cerca de R$ 30 bilhões deixaram de ingressar aos cofres públicos anualmente. Custos com subsídios – via crédito do BNDES, por exemplo – seguiram a mesma lógica do dinheiro abundante concedido sem um debate maduro. É verdade que a China parou de ajudar o Brasil.
A desaceleração do parceiro asiático tirou o benefício externo que turbinou o PIB na gestão de Lula. A nova realidade encontrou um País fiscalmente mais frágil, ao contrário do que se poderia supor, e se lastimou na negação eleitoreira que aprofundou o problema em 2014. Atualmente é a recessão que protagoniza a parte mais perversa da questão fiscal, um problema de confiança que não deixa de remeter ao passado, de como Dilma relutou em flexibilizar regras de concessão, onerou a Petrobras congelando preços, não atacou distorções na Previdência e ainda tentou esconder que o Brasil tinha um enorme problema.