O executivo americano John Chambers, CEO e Chairman da Cisco, abriu, na segunda-feira 8, pela última vez, o Cisco Live, principal evento realizado anualmente pela fabricante de equipamentos de rede, que reuniu mais de 25 mil pessoas em San Diego, na Califórnia. Chambers, 65 anos de idade, 20 dos quais à frente da empresa, cujo faturamento chegou a US$ 47 bilhões, em 2014, está deixando o posto. Seus comandados, a quem ele se refere como “minha família”, o ovacionaram. Ao fim do discurso, algumas pessoas choravam, em meio a rasgados elogios ao chefe e a narrativas sobre seus feitos e, principalmente, sobre sua lendária bola de cristal.

O executivo é conhecido na indústria por fazer previsões bombásticas. Uma delas, por exemplo, foi a de que os serviços de telefonia fixa iriam se tornar gratuitos – algo que enfureceu as grandes operadoras de telecomunicações, mas que se tornou uma realidade após o surgimento de empresas como a Skype, hoje controlada pela Microsoft. Nesse quesito, ele não decepcionou. “Em 10 anos, 40% das grandes companhias não existirão ou não terão a mesma relevância”, afirmou Chambers, para delírio da plateia. “E essa é uma previsão conservadora.”

No dia seguinte, vestindo calça jeans, camisa clara e um blazer azul, Chambers se encontrou com jornalistas do Brasil, México, Canadá, Inglaterra, China e Coreia. DINHEIRO foi o único veículo brasileiro presente. Calmamente, ele explicou por que acredita que quase a metade das empresas atuais perecerão. “Estamos passando por uma nova revolução digital”, diz Chambers. “Ou você rompe com os paradigmas, ou será rompido.” Ele não exclui a própria Cisco de desaparecer do mapa dos negócios. “Meu maior medo é perder essa transição”, afirmou o executivo, que já escolheu seu substituto: Chuck Robbins, atual vice-presidente de operações, que assume o posto no dia 26 de julho.

O grande catalisador dessas transformações é a chamada internet das coisas. Trata-se da conexão de todo tipo de objeto à rede mundial de computadores, de carros até eletrodomésticos e eletroeletrônicos. Segundo ele, nem mesmo as cidades e os governos escaparão do tsunami tecnológico promovido pelo avanço da informática e das telecomunicações. Pelas contas da Cisco, a massificação da internet das coisas, com a conexão de tudo que é possível, atualmente, adicionaria à economia mundial um total de US$ 19 trilhões em novas oportunidades de negócios. Somente na América Latina, o montante que poderia ser adicionado chega a US$ 870 bilhões, sendo que o Brasil responde por US$ 352 bilhões.

“Os latino-americanos, graças à sua juventude, estão em posição de liderar essa transição”, afirma Jordi Botifoll, presidente da Cisco para a América Latina. “O que se precisa é vontade de mudar.” Para Botiffol, em grande parte, esse desejo deve partir dos governos. Uma das principais bandeiras dos defensores da tendência é o conceito de cidades inteligentes. Nele, serviços públicos, como o fornecimento de água e luz, e os equipamentos municipais, como semáforos, câmeras de segurança e parquímetros, passam a ser monitorados e gerenciados de forma centralizada e remota, por meio de sensores digitais.

A cidade de Kansas City, no Estado do Missouri, por exemplo, anunciou, durante o evento, um acordo com a Cisco para ser incluída entre os centros urbanos conectados e inteligentes. “Esse acordo vai melhorar a qualidade de vida e a eficiência econômica de Kansas City de uma forma inimaginável, por várias gerações”, disse Sly James, prefeito da cidade. Fora do comando da Cisco, Chambers, além de se dedicar à família, pretende aprender a pilotar helicópteros e tentar pacificar o Oriente Médio – seu plano para obter esse milagre é investir e criar uma forte classe média na região, que promoveria as mudanças necessárias, mas ele não deu muitos detalhes sobre como o colocaria em prática.

Ele também espera trabalhar nos bastidores, convencendo governos da importância dessa mudança tecnológica. “É importante que os governantes passem a preparar os cidadãos para o tipo de emprego que será criado, não para os trabalhos que tínhamos antigamente”, afirma Chambers. Como a maioria dos avanços tecnológicos, a internet das coisas deve provocar estragos no mercado de trabalho. Uma pesquisa da Universidade Columbia, de Nova Iorque, por exemplo, estima que a substituição da frota de 171 mil táxis em operação nos Estados Unidos por carros autônomos, projeto que está sendo desenvolvido pela empresa de aplicativos Uber, custaria apenas US$ 4,7 bilhões, considerando um custo de US$ 25 mil por automóvel.

Nada impossível para a Uber, companhia avaliada, atualmente, em US$ 47 bilhões. Segundo o futurista e palestrante americano Zack Kanter, o carro autônomo deve destruir cerca de 10 milhões de empregos. Além da Uber, o Google, a Tesla, fabricante de carros elétricos, e montadoras como a GM já estão trabalhando nessa tecnologia. A grande dificuldade de Chambers, no entanto, será superar o fato de a Cisco ser uma empresa americana, um empecilho de peso para empresas de TI, ao menos no Brasil. Desde que Edward Snowden, ex-funcionário da NSA, agência de segurança dos Estados Unidos, denunciou que a presidente brasileira, Dilma Rousseff, e companhias como a Petrobras haviam sido espionadas pelos americanos através da internet, o Tio Sam não goza de muito prestígio junto ao governo brasileiro, o que dificulta a captura de bons negócios.

O acordo assinado em maio pela presidente Dilma com o primeiro ministro da China, Li Keqian, que prevê investimentos da ordem de US$ 50 bilhões, inclui a cooperação na área das comunicações. Entre os projetos, estão a ampliação da cobertura e da capacidade das redes de 4G do Rio de Janeiro, além de um programa chamado Cidade Tecnológica, em linha com o conceito de cidades inteligentes. A chinesa Huawei, hoje uma das principais concorrentes da Cisco, é quem vai encabeçar essas iniciativas. Não por acaso, ao ser questionado sobre os países emergentes mais avançados tecnologicamente, Chambers cita o México e a Índia, países nos quais a Cisco desenvolveu parcerias mais abrangentes.

Os ventos, no entanto, podem mudar, se a visita oficial programada por Dilma ao presidente americano, Barack Obama, no dia 30 de novembro, se traduzir na retomada de uma relação de confiança e transparência entre os dois governos. Três meses antes, em setembro, o presidente chinês, Xi Jinping, terá um encontro com Obama, nos Estados Unidos. Vale lembrar que chineses e americanos vêm, há alguns anos, se estranhando no mundo digital.

No final de maio, inclusive, hackers chineses teriam invadido os computadores do governo federal americano e roubado dados de milhares de funcionários, em mais um caso de ataque contra o gigante ocidental, supostamente promovido pela maior potência do Oriente. “É importante dizer uma coisa: todo país faz espionagem, sem exceção”, afirmou Chambers. “Mas nunca abrimos nossa tecnologia para ninguém, nem para a NSA.” Na sua opinião, o momento é de transição. “Em tempos como esse, o principal erro que alguém pode cometer é continuar fazendo a coisa certa, por muito tempo.”