21/10/2016 - 20:00
“Aconselho qualquer pessoa a ir visitar nosso programa social”, diz o executivo Maurício Câmara, presidente da Danone no Brasil. “É transformador.” Qualquer um que frequente o mundo corporativo já deve ter ouvido essa frase inúmeras vezes. Assim como deve ter se deparado com a ideia de que a alta classe social vive numa espécie de “bolha”, protegida dos perigos do mundo real, da miséria e da violência. A questão é que ricos e pobres parecem mesmo viver em universos paralelos. E um fascina o outro. As novelas retratam, em grande parte, o mundo dos abastados, com suas empregadas uniformizadas, carros importados e apartamentos com grandes portas “pivotadas”. Os ricos, por sua vez, encaram a filantropia e o trabalho voluntário quase como algo espiritual, uma espécie de redenção. Daí frases como essa serem tão comuns. Mas, no caso de Câmara, é diferente. Suas palavras se referem a um caso concreto de união entre desenvolvimento econômico e social, que parte do mundo corporativo e tem como objetivo transformar a sociedade, para melhor, sem perder o foco na lucratividade.
A empresa que ele comanda no País, uma das maiores fabricantes de alimentos do mundo, cujo faturamento global foi de € 11 bilhões nos primeiros seis meses deste ano, desenvolveu um programa para vender iogurte para a Classe C e, simultaneamente, gerar renda nas comunidades. Trata-se do projeto “Kiteiras”, que promove o empreendedorismo social recrutando mulheres, em sua maioria mães solteiras, para trabalhar como vendedoras de kits de iogurtes, ou “kiteiras”, como elas são conhecidas. Sim, ele foi apoiado por doações, no início, e colocado em prática por meio de parcerias com ONGs. Só que dá lucro, tanto para a empresa, quanto para as vendedoras, e hoje caminha com as próprias pernas. “Negócios devem gerar valor para todos os envolvidos”, diz o executivo. “Não é apenas uma questão humana, ou de fazer o que é certo. É a única maneira que funciona.”
Essa visão de que empresas devem retornar à sociedade uma parte dos seus ganhos não é particular da Danone. Uma série de grandes companhias está adotando um jeito diferente de fazer negócios, no qual a filantropia foi incorporada ao contexto estratégico e o desenvolvimento social é uma das metas, ao lado do lucro e do crescimento econômico. De maneiras distintas, grandes corporações como Unilever, Fleury, Sodexo, Solvay, além da própria Danone, estão saindo de suas “bolhas” para criar negócios mais inclusivos, preocupados em reduzir o impacto negativo e desenvolvendo formas de gerar ganhos a toda a sociedade. Entre céticos e alienados, ativistas e líderes comunitários, ONGs e governos, elas estão mudando de postura, sem tentar apagar o passado, mas mirando em um futuro mais promissor.
Essas companhias privadas almejam, além dos ganhos financeiros, a salvação da humanidade, das suas organizações e, consequentemente, do capitalismo. “Para que uma empresa tenha alta performance de longo prazo, é preciso estar atenta a múltiplas dimensões e atuar pensando nas pessoas e no contexto em que ela está inserida”, afirma Ana Maria Diniz, filha do empresário Abilio Diniz e criadora de organizações como o Instituto Pão de Açúcar, o movimento Todos pela Educação e a ONG Parceiros da Educação. “Esse é o círculo virtuoso positivo: você recebe o que você dá.” O projeto “kiteiras” segue essa linha.
A Danone queria ampliar a venda de iogurtes para a classe C. O preço, no entanto, era elevado, tornando seus produtos pouco competitivos. Então, ela usou um fundo internacional, criado pela própria companhia, para financiar um projeto de empreendedorismo social. Na prática, funciona com como venda porta-a-porta, ao estilo Avon, Natura, Jequiti e Yakult. As mulheres selecionadas, que geralmente são as únicas provedoras de renda da casa, recebem um catálogo e treinamento. A partir daí, retiram o produto com um preço menor e oferecem o iogurte a conhecidos e parentes, propondo aos clientes também a opção de fazer uma compra fixa mensal – nos moldes de um clube de compras.
Lançado há cerca de dois anos, o programa não precisa mais de doações. Hoje, duas mil mulheres participam do projeto. Em média, elas ganham cerca de R$ 1,2 mil por cinco horas de trabalho. A meta é chegar ao final deste ano com 200 toneladas de produtos distribuídos por mês. Algumas usam o trabalho para complementar a renda. Outras dependem exclusivamente desse dinheiro. Para cada R$ 1 investido pela Danone, outros R$ 3 de renda foram gerados na comunidade. “Se retiro algum recurso para produzir, tenho de garantir que esse recurso volte, ou vai acabar”, afirma Câmara.“E sempre pensando no futuro. Se alguma coisa que fizemos causa um impacto, trabalhamos para resolver. Daqui um tempo, podemos descobrir que não foi o suficiente. Então trabalharemos para melhorar de novo. E assim continua, num ciclo interminável.”
O que está em discussão é um modelo de atuação, no qual o mundo empresarial compreende e aceita sua responsabilidade para o desenvolvimento social. “Entendemos que as empresas têm o desafio de encontrar novas formas de fazer negócios, novos métodos de colaboração, inovação e iniciativas que tragam qualidade de vida aos consumidores”, afirma Fernando Fernandez, presidente da Unilever no Brasil. A multinacional anglo-holandesa, que faturou € 53,27 bilhões no ano passado, adotou oficialmente essa postura em 2010, quando lançou seu Plano de Sustentabilidade, um documento que estabelece o objetivo de gerar crescimento para o negócio enquanto reduz o impacto ambiental e aumenta o impacto positivo na sociedade. “Buscar o crescimento a qualquer custo não é viável”, diz Fernandez. “Estamos passando por uma quebra de paradigma. O mercado como conhecemos vai mudar drasticamente e, com isso, a forma como as pessoas consomem. ”
Nesse sentido, a companhia empreendeu, no Brasil, em uma verdadeira cruzada em favor da diversidade. Somente no ano passado, mais de 50 mil mulheres receberam cursos de capacitação e empreendedorismo oferecidos pela Unilever em programas como o “Ciclo Brilhante”. “Promover a inclusão econômica da mulher não é apenas a coisa certa a fazer, é fundamental para o crescimento da companhia no longo prazo”, afirma o executivo. “Não podemos esquecer que 70% dos nossos consumidores são mulheres.” O fato é que está cada vez mais clara a relação entre lucro e sustentabilidade. Essa ideia, que ganhou corpo nos anos 1980 e 1990 no ambiente acadêmico, começou a fazer parte do vocabulário de executivos de alto escalão nos anos 2000.Agora, parece estar disseminada por toda a organização, do presidente ao analista – pelo menos em empresas com gestão moderna.
Uma pesquisa realizada pela Fundação Dom Cabral com 476 executivos brasileiros aponta que 83,14% deles acreditam que há uma relação direta entre a atuação responsável e uma maior lucratividade. Considerando apenas os respondentes na faixa dos 30 anos, esse porcentual sobe para 91,67%. Apenas 8% acreditam que não há relação entre lucro e sustentabilidade, número que cai para 2,78% entre os mais jovens. “É preciso uma geração inteira para mudar a forma como as pessoas pensam”, afirma o filósofo americano Edward Freeman, professor da conceituada Darden School of Business, escola de negócios da Universidade de Virgínia, nos Estados Unidos. Freeman é considerado o criador da Teoria do Stakeholder, embora não goste de receber muito crédito por isso. “Várias pessoas participam desse movimento”, disse.
Seja Freeman ou não o criador da teoria, o fato é que seu livro Strategic Management: A Stakeholder Approach, de 1984, se tornou um marco da administração. Ele preconiza que não há como um negócio ser bem-sucedido sem levar em consideração todos aqueles que participam ou são impactados pela empresa – os chamados stakeholders. Antigamente, os gestores levavam em conta apenas os anseios e aspirações dos donos na hora de tomar uma decisão. É o famoso modelo com “foco no resultado”. Freeman e seus colegas descobriram que essa é uma péssima forma de se obter resultados. “A ideia de que o dinheiro é o que importa tem muita aderência nas organizações”, diz o professor. “Mas quando você olha para a atuação das empresas, não é de fato o que fazem. Elas precisam gerar valor para seus clientes, seus fornecedores, parceiros etc. Pensar apenas no acionista não traz resultado.”
Demorou um pouco, mas o mundo corporativo está começando a entender isso. E a cadeia produtiva está ficando maior. A lista dos stakeholders envolve governos, o terceiro setor, as pessoas e, claro, o meio ambiente. “A empresa moderna precisa entender a importância das externalidades socioambientais ao longo da cadeia de valor do seu negócio”, afirma Marcelo Castelli, presidente da fabricante de papel e celulose Fibria. “Uma sociedade mais justa se faz com o compartilhamento de riqueza, que vai muito além de pagar impostos e gerar empregos.” A Fibria mantém um programa de fomento florestal, no qual pequenos produtores fornecem a madeira utilizada em suas fábricas. “A empresa poderia comprar terras, plantar e ficar com 100% do lucro da operação”, diz Castelli. “Mas se você não faz a sociedade crescer junto com você, não é sustentável. E o que é melhor: todos ganham. Não há filantropia nesta estratégia.”
Parte dessa mudança é motivada por acontecimentos que acabaram por precipitar a necessidade de setores inteiros atuarem de maneira mais sustentável. Um exemplo está na indústria química. Em 1984, ano em que Freeman publicava sua famosa obra, 40 toneladas de gases tóxicos vazaram de uma fábrica da empresa americana Union Carbide na cidade de Bhopal, na Índia. Cerca de 10 mil pessoas morreram por influência direta do desastre, o maior na história da indústria. Mais de 150 mil pessoas sofrem até hoje os efeitos dos gases e 50 mil estão incapacitados para o trabalho. Desde então, a indústria química mudou suas operações. A segurança se tornou prioridade e os processos evoluíram, não só evitando acidentes, mas aumentando a eficiência.
“Nosso posicionamento, hoje, é de que podemos fazer parte da solução, não do problema”, afirma José Matias, presidente da Solvay na América Latina, fabricante de produtos químicos com faturamento de € 10,6 bilhões no ano passado. Nesse sentido, a companhia aposta no desenvolvimento de produtos cada vez menos dependentes de elementos químicos perigosos ou fontes não renováveis, como o petróleo.
Agora, engana-se quem pensa que as empresas, e seus líderes, estão dispostas a mudar somente diante de uma tragédia. Um dos grandes motivadores dessa transformação é um sentimento de que a iniciativa privada tem a capacidade de agir com mais efetividade em áreas que, até hoje, eram deixadas a cargo do governo. A educação é uma delas. Em 2007, um grupo de empresários, entre eles Susanna Lemann, esposa de Jorge Paulo Lemann, o homem mais rico do Brasil, fundaram o Instituto Proa. A ideia é ajudar estudantes de escolas públicas a encontrarem o primeiro emprego e se tornarem líderes no mercado de trabalho.
O objetivo não é formar executivos, mas cidadãos capazes de serem donos de suas próprias vidas. “É mais do que apenas atender uma necessidade do mercado de trabalho”, afirma Carlos Marinelli, presidente do Grupo Fleury, empresa de análises clínicas que participa ativamente do projeto. “O instituto está fundamentado na crença de que jovens que tenham potencial e vontade podem ter resultados muito superiores do que se fossem, simplesmente, deixados a cargo do sistema.” O Instituto Proa reúne 210 jovens por semestre em cursos profissionalizantes de administração. O objetivo não é fazer com que eles, necessariamente, entrem em uma faculdade e se tornem executivos de grandes empresas.
Trata-se, na verdade, de uma espécie de coaching, no qual os estudantes são estimulados a desenvolver competências técnicas e, principalmente, comportamentais. Isso gera dois efeitos: primeiro, possibilita que eles cheguem ao primeiro emprego mais preparados. Em segundo lugar, cria líderes capazes de influenciar suas famílias, amigos e comunidades inteiras. “O Brasil é um País de oportunidades. Minha avó era analfabeta, meus pais não completaram o ginásio e eu tive a oportunidade de cursar um mestrado no exterior”, diz Martinelli. “As empresas podem ser complementares ao governo, oferecendo aquele impulso final para os jovens que querem se tornar protagonistas.” O Fleury é o maior contratador de jovens que passaram pelo Proa.
Mas, no final do dia, o que pensa o acionista? Para a francesa Sodexo, não existem dúvidas sobre o valor que o mercado financeiro dá a essas questões. “Hoje, o recurso alocado para a sustentabilidade é encarado como um investimento focado na perpetuação do negócio”, afirma Mauro de Marchi, presidente da Sodexo On-site, divisão de serviços da multinacional. Não por acaso, a maioria das bolsas de valores do mundo possuem índices que avaliam as companhias. É o caso do Índice Dow Jones de Sustentabilidade, lançado em 1999, considerado uma referência global no assunto. A Sodexo lidera o índice há 12 anos. O fato é: as universidades, as empresas, o mercado financeiro e a sociedade já perceberam o poder da sustentabilidade como uma ferramenta de negócios e de lucros.