Poucas indústrias passaram por tantas transformações nos últimos tempos como a da música. Da invenção do fonógrafo, pelo americano Thomas Edison, em 1877, ao tocador de MP3, consagrado pelo iPod, da Apple, em 2001, o setor foi atropelado por tecnologias que muitas vezes colocaram modelos de negócios consagrados em xeque. Não por acaso, o disco de vinil e o CD, hoje, são praticamente peças de museu, apreciados por colecionadores nostálgicos. Eles sucumbiram ao advento da música digital. Ao mesmo tempo, as empresas da área foram lentas em entender essas mudanças.

A pirataria foi elevada a categoria de principal vilão do setor e os embates contra esse inimigo se deu mais no campo judicial do que no das inovações tecnológicas. Conclusão: as gravadoras viram, inertes, suas vendas erodirem. Em 2004, por exemplo, o faturamento do segmento era de US$ 33,6 bilhões, segundo um estudo da IFPI, entidade que representa as gravadoras. Nove anos depois, esse total caiu para menos da metade: US$ 15 bilhões. O estudo, no entanto, não traz apenas más notícias para a indústria fonográfica. Mais uma vez, os dados demonstram que o setor passa por um novo processo de reinvenção de seu modelo de negócios.

Os serviços de streaming, por meio dos quais consumidores podem ouvir a música online no modelo de computação em nuvem, estão ganhando terreno em relação aos downloads, que tiveram uma queda de 2,1% em 2013. De acordo com a pesquisa da IFPI, as receitas com música digital alcançaram US$ 5,9 bilhões em 2013, alta de 4,3%. Mas os serviços de streaming, que cobram assinaturas, ultrapassaram, pela primeira vez, a receita de US$ 1 bilhão. E, melhor do que isso, avançaram 51,3%. “O modelo de assinatura está fazendo com que mais consumidores paguem pela música”, diz um trecho do relatório.

“Muitos deles parecem mudar de serviços piratas para os legais.” No ano passado, 28 milhões de pessoas assinavam um serviço de streaming. Em 2010, eram oito milhões. Nessa área não são a Apple, o Google ou a Amazon que estão dando as cartas. Os líderes são a sueca Spotify, a francesa Deezer e as americanas Rdio e Napster. Seus atrativos são um catálogo de milhões de canções, que podem ser ouvidas quando, onde e na hora que o usuário quiser por uma assinatura mensal que fica na casa dos R$ 15 no Brasil. “A pirataria nos força a continuar inovando”, afirma Gustavo Diament, diretor-executivo da Spotify para a América Latina.

A empresa, fundada em 2006, é considerada pioneira do gênero. Ela conta com 40 milhões de usuários, que usam desde o serviço pago até o gratuito. No ano passado, estima-se que tenha distribuído US$ 500 milhões em direitos autorais para as gravadoras. A assinatura não é a única forma de receita dos serviços de streaming de música. Os consumidores podem ouvir gratuitamente canções no site. Nesse caso, a publicidade financia a operação e, claro, o caixa das gravadoras. O americano Rdio, que atuava apenas por meio de assinatura, é um dos que passaram a oferecer publicidade, nas pegadas dos rivais Spotify e Deezer. “Com essa oferta, os usuários terão um belo convite para assinar o serviço pago e desfrutar de todos os recursos”, diz Anthony Bay, CEO do Rdio.

“As pessoas estão acostumadas a ter acesso a tudo de graça na internet e essa é uma forma de ajudar na transição.” Na briga para convencer os consumidores a assinarem os seus serviços, o Deezer aposta na alta fidelidade sonora. Em parceria com a Sonos, fabricante californiana de alto-falantes sem fio, a empresa francesa lançou o Deezer Elite. “Com isso, agradamos aos usuários mais preocupados com a qualidade”, afirma Mathieu Le Roux, diretor do Deezer na América Latina. O Elite começou a ser oferecido nos EUA em meados de setembro. Não há previsão da chegada ao Brasil, mercado liderado pela Deezer, de acordo com a consultoria comScore.

OS GIGANTES ESTÃO CHEGANDO Os recentes movimentos das empresas especializadas em música na nuvem são também consequências da iminente chegada dos gigantes da tecnologia nesse mercado. A Amazon, por exemplo, lançou seu serviço de streaming em junho deste ano. Mas o Amazon Prime Music decepcionou os consumidores, por ser um adendo ao Amazon Prime, cuja assinatura anual de US$ 99 dá direito a uma série de serviços, como frete grátis e acesso a livros e vídeos. Além disso, ele conta com um acervo limitado, com apenas um milhão de faixas. Seus rivais especializados oferecem mais de 30 milhões de canções.

O Google também já está dando seus primeiros passos nessa área. No ano passado, a empresa de Mountain View lançou o All Music Access. Esse serviço chegará ao Brasil na próxima semana para usuários de smartphones da Samsung. Até o fim deste ano, ele será aberto para celulares de outros fabricantes. De interface clara e aproveitando a oferta que já havia na loja virtual da Google Play – que vende MP3 por download – o gigante das buscas tem um trunfo e tanto na manga: o YouTube. O Google confirma que adicionará recursos de assinatura de música na plataforma de vídeos, embora não adiante datas ou detalhes dos recursos.

O site Android Police informa que o serviço se chamará Music Key e terá integração com a Google Play. A expectativa sobre a entrada do Google nesse mercado só era superada pela existente em relação à da Apple, que deve muito à música por sua volta aos holofotes, na década passada. Foi com o iPod que a companhia fundada por Steve Jobs começou a deixar a concorrência na poeira. A empresa vive um dilema por ter nas vendas por download de sua loja iTunes uma enorme fonte de renda.

A consultoria Nielsen relata que a Apple detém uma participação de mais de 60% no faturamento do mercado fonográfico digital. Essa postura parece estar mudando. Neste ano, a Apple comprou a Beats, por US$ 3 bilhões, na maior aquisição de sua história. Além dos caros e descolados fones de ouvido, a Beats oferece um serviço de música na nuvem. O site TechCrunch, especializado em tecnologia, divulgou que a empresa da maçã iria fechar o Beats Music. A Apple desmentiu os rumores. Porém, a empresa confirmou que mudanças acontecerão. E não custa lembrar o que dizia Jobs: é melhor ser canibalizado por si mesmo do que por um concorrente.

Uma mega-opção

O polêmico Kim Dotcom promete revolucionar a música digital com o seu Baboom

Uma operação de guerra foi armada pelos Estados Unidos, em 2012, para prender o alemão Kim Schmitz, mais conhecido como Kim Dotcom, em sua mansão em Coatesville, a 30 quilômetros de distância de Auckland, na Nova Zelândia. Na aparência, Dotcom é a própria antítese de uma ameaça. Trata-se de um gordinho que ataca de DJ e é um dos melhores em jogos de tiro no mundo. Ele foi rendido por soldados portando fuzis e helicópteros similares ao que usava no mundo virtual por outro motivo: era o responsável pelo site Megaupload, um dos endereços mais visitados do mundo, que distribuía arquivos de filmes e séries na rede gratuitamente.

Acusado de pirataria nos EUA, Dotcom foi processado, teve seu site fechado e ficou detido durante dois meses na Nova Zelândia. Posto em liberdade, o alemão não desistiu. Exatamente um ano depois, lançou o Mega, serviço que promete criptografia de última geração para que os usuários compartilhem e guardem arquivos, com termos de uso similares ao Dropbox e Google Drive. “Nem eu sei o que os usuários sobem no Mega”, disse ele, em entrevistas ao lançar o serviço. Agora, o polêmico Kim Dotcom quer explorar sua faceta musical. Ele deve lançar o Baboom, serviço de música na nuvem que promete “revolucionar” o segmento.

Até o momento, pouco se sabe sobre os recursos que estarão disponíveis. Há uma demonstração do site com apenas um álbum, Good Times, do próprio Dotcom. Parte do serviço de streaming está sendo desenvolvida na cidade do Porto, em Portugal. Em entrevistas dadas a veículos locais, as pessoas envolvidas no projeto falam em “verdadeira independência” e de “dar poder aos criadores”, o que já indica um ataque a gravadoras e distribuidoras de música digital, pré-requisito para que os artistas tenham acesso aos atuais serviços de música por streaming. O Baboom ainda não assusta os atuais líderes do segmento. “Dificilmente ele vai conseguir fechar acordo com uma gravadora de peso”, afirma Mathieu Le Roux, diretor-executivo do Deezer, na América Latina.

Há bons motivos para prever que o Baboom causará muito barulho no segmento musical. Em julho foi anunciada a contratação de Tony Smith, um veterano do setor, com passagens pela Sony Music e pela BMG, para atuar como diretor-financeiro. Além disso, um prospecto de 41 páginas distribuído há algumas semanas para investidores australianos revela que a intenção da empresa é obter aportes de US$ 8 milhões. Há planos também de abrir o capital na Bolsa da Austrália. Pelo sim, pelo não, Dotcom recrutou o executivo Grant Edmundson para atuar como presidente da Baboom. Antes, Edmundson ganhava a vida como advogado especializado em mídia. Trata-se de um indicativo de que o novo serviço deve provocar polêmica. Bem ao estilo de seu fundador.