Nas horas seguintes ao massacre ocorrido na boate Pulse, em Orlando, em meio ao luto e à comoção pelos 50 mortos, uma série de representantes dos setores mais conservadores da sociedade americana se apressou em desvincular da tragédia, perpetuada graças a um rifle de assalto, a facilidade criminosa com que armamentos pesados são vendidos nos Estados Unidos. A discussão é antiga. O assunto volta à pauta sempre que chacinas como essa irrompem em manchetes estarrecedoras, algo que vem acontecendo com uma frequência assustadora nas duas últimas décadas, para assombrar o mais temido pesadelo dos americanos, de um ataque à sua liberdade. Há uma grande dose de perversidade e hipocrisia no discurso que prega a não relação entre armas e violência. Em primeiro lugar, por se tratar de uma mentira. Mas, o mais importante, pelo fato de serem palavras patrocinadas pela indústria bélica, especificamente pela NRA, a associação que representa os interesses das fabricantes de armas nos Estados Unidos.

É bem verdade que armas, sozinhas, não geram violência. Lugares que vivenciaram grandes aumentos ou declínios na criminalidade apresentam cenários complexos, nos quais é impossível determinar um elemento decisivo para explicar o fenômeno. Recentemente, DINHEIRO fez um levantamento mostrando que Estados brasileiros que aumentaram o número de armas não experimentaram um crescimento na violência. O contrário também não pôde ser verificado: menos armas não significam menos violência. Questões socioeconômicas, provavelmente, têm um peso muito maior nessa questão – há quem diga que a queda da violência em cidades americanas como Nova York, nos anos 1990, deva ser creditada à legalização do aborto, na década de 1970,  que impediu o nascimento de crianças com infâncias problemáticas.

A questão é que a falta de uma ligação direta entre o número de armas e o de homicídios não serve como argumento a favor de uma liberalização no comércio de produtos letais. Utilizar essa lógica simplista como forma de evitar uma regulação maior ao seu produto, por mais tentador que seja para os fabricantes de armamentos leves, que movimentaram US$ 65 bilhões no ano passado, é uma violação à regra mais básica da indústria bélica: não se torne o alvo daquilo que você vende. Armas podem não ser a causa da violência, mas são um meio muito eficiente. Em El Salvador, por exemplo, considerado o país mais violento do mundo atualmente, é provável que a situação socioeconômica responda em maior grau pelo cenário. Mas não se pode ignorar o fato de que o país foi o maior importador ocidental de armas dos EUA nos anos 1980. 
É leviano, também, dizer que a facilidade de se comprar um rifle em uma gun store não seja o motivo de tantos massacres.

Essa cruzada ideológica da NRA, agora, tende a gerar um efeito contrário ao pretendido pelos armamentistas. Republicanos já consideram votar a favor de medidas de controle de armas. Donald Trump, o boquirroto candidato do partido à presidência, também deu declarações nesse sentido. Não se trata de banir o seu comércio. Mas torná-lo responsável. O Brasil, que hoje não só é o maior importador latino-americano de armas dos EUA, mas também um grande player nesse mercado graças a empresas como Taurus e CBC, deve prestar mais atenção a esse discurso para não cair na tentação de simplificar a luta contra a violência. A NRA, inclusive, já esteve por aqui advogando em favor da liberação irrestrita das armas. Em 2003, dois anos antes do referendo sobre o desarmamento, no qual o “não” venceu, ela enviou ao País o lobista Charles Cunningham para ajudar na campanha. No ano passado, a “bancada da bala” obteve vitórias importantes no Congresso, tornando mais fácil a aquisição de armamentos por civis. Esse não é um caminho seguro para a população ou para a indústria armamentista.

(Nota publicada na Edição 972 da Revista Dinheiro)