06/01/2023 - 0:10
O relatório final da equipe de transição de Lula — de todo amplo, detalhista e técnico — realmente chocou a maioria dos aliados que estão assumindo o bastão de governo. É uma radiografia tenebrosa, e nem poderia ser diferente, que retrata o descaso com políticas públicas e o histórico atraso no campo social. Nunca, jamais, em outros tempos, a sociedade brasileira viveu um retrocesso dessa magnitude, no âmbito das camadas de mais baixa renda, que foram literalmente deixadas de lado, alijadas ou com a perda de acesso quase absoluta a serviços vitais de educação, saúde e, fundamentalmente, alimentação. Com 33 milhões de pessoas passando fome, um número ainda maior na condição de insegurança alimentar, o País teve um baque recorde no campo da renda, com uma desigualdade sem precedentes, ampliando ainda mais o fosso que separa ricos e pobres. O trabalho de recomposição dessa cratera custará não apenas muito dinheiro como tempo — decerto, mais que os quatro anos desse futuro governo. O desafio do chamado Lula III será o de religar o passado, o de resgatar resultados como os do primeiro mandato do demiurgo, quando ele efetivamente trouxe para o consumo quase 35 milhões de brasileiros (que estavam fora do mercado por absoluta falta de recursos) e promoveu ações efetivas de amparo a essas camadas de cidadãos. Na realidade atual, indo em direção diametralmente oposta, os números da passagem Bolsonaro pelo poder são espantosos. Dentre as crianças com menos de sete anos de idade, o acompanhamento vacinal caiu de 68% em 2019 para 45% neste ano. No plano da promoção da igualdade racial, a redução dos programas chegou a 93% nos últimos tempos. O mesmo indicador de 93% se repete quanto a quantidade de rodovias federais sem contratos de manutenção. Mais de 14 mil obras estão paradas e quase 45 mil quilômetros quadrados de floresta amazônica foram desmatados nesses quatro anos. As tragédias projetam-se também para o ano de 2023: a gestão Bolsonaro deixou uma proposta de cortes no orçamento da Saúde na casa dos R$ 10,47 bilhões, o que praticamente inviabiliza, caso levado adiante, programas e ações estratégicas do SUS. Não restam mais dúvidas, reiterando o que disse o vice-presidente Geraldo Alckmin, que coordenou os trabalhos da transição, “o governo federal andou para trás”. E fez uma demolição calculada (é possível dizer), com o esvaziamento de órgãos de controle — do Ibama ao INPE, a maioria à míngua — e cortes que levaram o Brasil a ficar, por um mandato inteiro, sem os dados estatísticos do Censo, praticamente às cegas sobre como conduzir políticas de Estado. O desmantelamento de estoques reguladores de alimentos, da agricultura familiar, da verba para a merenda escolar e o aumento das mortes maternas, da desnutrição infantil e do extrativismo ilegal completam o quadro dantesco. Lula promove agora um “revogaço” em atos do antecessor para arrumar o que ele bagunçou e cancelar decisões sobre armas, meio ambiente, educação e igualdade racial. O novo inquilino do Planalto corre contra a resistência da praça financeira e do empresariado, que enxergam com maus olhos a sua volta e algumas das ideias em gestação. O tamanho da tarefa não é nada pequeno e, talvez, prevendo as dificuldades pela frente, é que ele já começou a se movimentar e a trabalhar bem antes da posse. Não há tempo a perder.
Carlos José Marques
Diretor editorial