Pode-se dizer, com perdão do trocadilho, que o tempo voou para o Grupo Latam nos últimos dois anos e meio. Afetada pela pandemia, a companhia aérea predominante na América do Sul viu o movimento despencar nos primeiros meses de crise sanitária em 2020. Afundada em dívidas de US$ 18 bilhões, recorreu ao Chapter 11 (Capítulo 11, equivalente americano à recuperação judicial brasileira), para manter os aviões no ar. Além disso, a holding, no Chile, viveu momentos de tensão em 2021 diante do interesse da concorrente brasileira Azul de comprar a organização. Na quinta-feira (3), enfim, o alívio. A Latam anunciou em fato relevante a saída da recuperação judicial e o início de um novo capítulo, com roteiro recheado de notícias impactantes, como liderança do mercado nacional, crescimento das rotas domésticas, retomada de 80% dos voos internacionais, incremento dos negócios no segmento de carga, além de mudanças relevantes em sua estrutura acionária de companhia aberta no mercado de capitais.

Segundo informações de fonte próxima ao negócio, com a conversão de dívida em equity, o controle da Latam passou ao grupo de credores, os fundos Sculptor Capital, Sixth Street e Strategic Value Partners, que detêm agora 66% das ações da companhia. Até então principais acionistas, a Qatar Airways, a Delta Air Lines e a família chilena Cueto viram a participação cair de 46% para 27% — o restante está pulverizado. O plano de recuperação prevê a injeção de aproximadamente US$ 8 bilhões por meio de uma combinação de aumento de capital, emissão de títulos conversíveis e novas dívidas. Isso inclui o financiamento de US$ 5,4 bilhões garantido por Delta, Qatar e Cueto e pelos principais credores.

AUMENTO DE CAPACIDADE Transporte de mercadorias ganhou força na pandemia. Latam tem transformado aviões de passageiros em cargueiros. (Crédito:Divulgação)

Fora do Capítulo 11, o grupo renasce melhor estruturado e com números mais atraentes. São, aproximadamente, US$ 10,3 bilhões em patrimônio, US$ 2,2 bilhões em liquidez, além de uma dívida quase 35% menor, de US$ 6,9 bilhões. De acordo com a fonte, a Latam sai muito mais forte e preparada para os novos desafios. “A partir de agora é uma companhia bem diferente. Menos endividada, mais enxuta e com custo de operação mais baixo. Muito mais competitiva do que entrou na crise”, afirmou. “Agora é hora de celebrar.”

O momento, teoricamente, se revela mais cômodo do que o vivido em maio de 2020 quando o grupo Latam e as afiliadas Chile, Peru, Colômbia, Equador e Estados Unidos entraram em recuperação judicial. Foi a forma encontrada pela organização e por seus braços regionais para se protegerem durante o processo de reorganização financeira. Roberto Alvo, CEO da Latam, afirmou à época que a “Latam entrou na pandemia como um grupo de companhias aéreas saudáveis e lucrativas, mas circunstâncias excepcionais resultaram em um colapso na demanda global”, disse.

A operação brasileira, que responde por cerca de 50% da receita total do grupo, apelou à corte americana em julho de 2020, após o fracasso na negociação de um empréstimo com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). O CEO da Latam Brasil, Jerome Cadier, disse na ocasião que a decisão havia sido tomada para que a empresa pudesse ter acesso a novas fontes de financiamento. “Temos o desafio de transformar a empresa para que ela se adapte à realidade pós-pandemia e garanta a sustentabilidade no longo prazo”, disse. E foi o que aconteceu.

AVANÇO NO MERCADO A aérea Azul, de John Rodgerson, chegou a oferecer R$ 28 bilhões, mas o valor foi recusado. (Crédito:Claudio Gatti )

Se, por um lado, a pandemia trouxe muitos problemas às companhias aéreas, principalmente de liquidez, por outro motivou decisões que geraram economia. “Todos os contratos foram revistos para baixo.” A Latam renegociou acordos tecnologia de informação, de leasing das aeronaves, devolveu alguns aparelhos no ano passado ­— antes da crise sanitária eram 160, mas o volume atual não é revelado —, terceirizou a operação de ground handling (rampa, limpeza e gestão de equipamentos de solo) e, à época, dispensou colaboradores. O total caiu de 21,5 mil, em 2019, para 15,4 mil, em 2020, mas subiu para 17,2 mil, em setembro deste ano, diante da retomada das rotas.

AZUL A fragilidade financeira do grupo foi um chamariz para concorrentes potenciais, mais especificamente a Azul. A empresa comandada no País pelo americano John Rodgerson apresentou no segundo semestre de 2021 uma proposta de aquisição da Latam por R$ 28 bilhões, considerada “incompleta e insuficiente” por Roberto Alvo, além de ser descartada por credores e por acionistas.

A saída da recuperação judicial, no entanto, é cercada de desafios, principalmente em razão dos altos custos que envolvem o setor — 60% deles atrelados ao dólar. Apenas o querosene de aviação teve alta de 64,3% entre janeiro e junho deste ano. A companhia também sofre com a concorrência acirrada nas rotas domésticas, apesar de sair do Chapter 11 com dez novos destinos acrescidos durante a pandemia — são 54 cidades no total atendidas pela empresa. Já em relação à operação internacional a Latam é soberana. Já retomou os voos a 20 dos 26 países atendidos no período pré-Covid-19.

O crescimento da demanda fica evidente nos números. A Latam foi líder de mercado no Brasil no terceiro trimestre de 2022, de acordo com a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac). Em voos domésticos, a bandeira teve 38,7% de participação, percentual que chegou a 21,4% nos internacionais. Os dados apontam ainda que a companhia transportou mais de 8 milhões de passageiros no Brasil no período, um crescimento de 53% na comparação anual. “A Latam lidera o mercado nacional há praticamente um ano e meio, o que não acontecia desde meados da última década. E poderia estar crescendo mais se os preços das passagens estivessem a patamares mais baixos”, disse a fonte, ao destacar que o aumento do custo do petróleo, decorrente da guerra na Ucrânia, deve seguir alto pelos próximos meses.

CARGO Com as restrições de circulação de passageiros e os espaços aéreos fechados entre os países na pandemia, o transporte de mercadorias ganhou força embalado pelo crescimento do e-commerce. A exemplo de empresas de entrega terrestre, as aéreas souberam tirar proveito. No caso da Latam Cargo, o transporte é realizado em cargueiros e no porão de aeronaves de passageiros para até 139 destinos em 22 países, sendo sete deles exclusivos para cargas. No Brasil, são atendidos 50 destinos. Ao todo, o grupo tem 15 cargueiros Boeing 767-300F em sua frota e está avançando no seu projeto global de conversão de Boeing 767 de passageiros em cargueiros até 2023, quando totalizará 21 Boeing 767-300F. Uma mostra de que, seja com pessoas, seja com mercadorias, a Latam está mais do que preparada para voos mais altos.