27/12/2013 - 21:00
Fui convidado para presidir o Banco Central (BC) em 2002, poucos anos depois da implementação da infraestrutura legal e técnica para a busca da estabilidade, num processo iniciado no Plano Real. Já tínhamos, então, a lei da responsabilidade fiscal, o regime de metas de inflação e o câmbio flutuante. Mas a situação ainda era de muita vulnerabilidade. Em maio de 2003, a inflação acumulada de 12 meses atingiu 17%. As reservas internacionais eram baixas (ao redor de US$ 20 bilhões) e estavam em queda, atingindo o piso de cerca de US$ 16 bilhões. Só as dívidas de curto prazo com o FMI eram de US$ 30 bilhões.
Meirelles: depois da presidência mundial do BankBoston nos EUA,
comandou o BC na era Lula. Hoje, é conselheiro de empresas,
como o Grupo J&F
A dívida pública líquida era de mais de 60% do PIB, enquanto a dívida cambial, isto é, a parcela da dívida doméstica indexada ao dólar, atingiu cerca de 40% no total das dívidas domésticas. Diante de situação tão difícil e de grande vulnerabilidade, optamos por uma terapia de choque, com forte ajuste monetário e fiscal. A Selic, a taxa básica de juros, chegou a 26,5% em fevereiro de 2003. A meta de superávit primário foi aumentada para 4,25% do PIB, e atingimos mais do que isso em 2003. O ajuste foi duro e a economia caminhou para um impasse.
Algumas empresas tiveram de elevar preços, pois tinham contrato de fornecimento de longo prazo com taxas e preços que embutiam inflação elevada em 2003, antevendo um descontrole inflacionário no primeiro ano do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Isso encareceu os estoques, e algumas empresas resistiram, num primeiro momento, a um ajuste. Mas muitas acabaram reduzindo preços para adequá-los à realidade do momento. Em conversa com um grupo de empresários, em maio de 2003, um deles me disse: “Minha empresa não vendeu nada no mês passado”. Respondi: “Vou lhe explicar por que o senhor não vendeu nada.
No final de 2002, prevendo inflação alta e descontrole monetário e fiscal, o senhor contratou a fixação de preços por prazo maior com fornecedores em troca de reajuste elevado. Para resolver o seu problema, o senhor gostaria que o Banco Central afrouxasse a política monetária e deixasse a inflação subir para que os preços de mercado chegassem ao nível de preço dos seus estoques, enquanto o País pagaria o custo do descontrole inflacionário. Vou lhe dizer o que eu acho que o senhor deveria fazer e depois o que acho que o senhor vai fazer. O senhor deveria, neste momento, cortar o preço de venda, assumir o prejuízo e renegociar com fornecedores, que também estão tendo problema de venda com preços inflacionados.
Quando começarem a vender, o Brasil aos poucos voltará a crescer, com inflação estabilizada. Assim, o senhor evitará maiores prejuízos e ganhará muito à frente. Mas eu acho que o senhor não fará isso. Acho que a primeira coisa que tentará é me convencer, como faz agora. Garanto que não funcionará. A segunda coisa que o senhor e outros possivelmente farão serão críticas pesadas à política monetária. Meu palpite é que não funcionará. A terceira coisa que o senhor fará é o que estou lhe sugerindo agora, mas depois de algum tempo e com custo maior que o necessário.” Foi o que aconteceu.
O ajuste de preços começou em junho e julho de 2003, quando a inflação caiu de forma substancial, chegando a zero em certo momento, depois subindo em direção à meta. As expectativas de inflação caíram, o BC ganhou credibilidade e podemos começar a baixar os juros. O País começou a crescer em julho de 2003 e manteve o crescimento durante 61 meses consecutivos. Já a inflação de 2005 a 2010 não só oscilou em torno do centro da meta como em alguns momentos ficou abaixo dela. Aspecto da maior importância nesse processo é a chamada coordenação das expectativas de inflação.
No momento em que os formadores de preços acreditam que a inflação estará na meta, tendem a reajustá-los em torno dela, o que reduz os custos de ajuste para a sociedade. O crescimento médio do Brasil, do segundo semestre de 2003 a 2010, foi acima de 4% e seu potencial de crescimento, isto é, a capacidade de crescer sem inflação, atingiu 4,7% ao redor de 2008. Em resumo, é possível fazer um trabalho eficiente no Brasil. A sociedade brasileira responde de forma adequada.
A minha experiência no grande esforço pela estabilidade brasileira, portanto, foi muito gratificante. A manutenção dessa valiosa estabilidade será assegurada pela continuidade de uma estrita aderência ao tripé econômico: a busca da meta de inflação; uma política fiscal que assegure um saldo primário das contas públicas e dê segurança à sociedade; e uma gestão do câmbio que o permita flutuar livremente, mas administre os excessos ou a falta de liquidez. São condições básicas para o Brasil adotar medidas que elevem o investimento e a produtividade e seguir, assim, sua evolução rumo ao padrão de vida almejado por todos.