13/02/2015 - 17:00
O que a cantora Tina Turner, o ator John Malkovitch, os pilotos Fernando Alonso e Michael Schumacher, o estilista Valentino, a modelo Elle MacPherson e Karekin II, patriarca da igreja da Armênia, têm em comum? Resposta: todos eles – e mais um nutrido time de artistas, esportistas e celebridades – misturaram suas poupanças com o dinheiro de traficantes de armas e drogas. O patrimônio dos famosos também se mesclou aos bilhões sonegados por corporações internacionais que usaram estruturas financeiras complexas para lesar o Fisco. Todos eles, assim como outros 100 mil endinheirados, investiram no private bank do banco britânico HSBC, na Suíça.
No domingo 8, um esforço conjunto de 140 jornalistas de 45 países, reunidos no Consórcio Internacional dos Jornalistas Investigativos (ICIJ, na sigla em inglês), tornou público o que pode ser a maior estrutura de lavagem de dinheiro e sonegação fiscal já revelada em toda a história. Pelas contas do ICIJ, as malfeitorias poderão chegar a US$ 120 bilhões, o equivalente a um banco de médio porte no Brasil. As investigações sobre esse dilúvio de dinheiro frio e sujo começaram em 2008, quando o engenheiro de sistemas franco-italiano Hervé Falciani, que então trabalhava no private do HSBC em Genebra, deixou espontaneamente o emprego.
Contratado em 2001 para reorganizar os sistemas do banco, ao analisar os dados, Falciani descobriu que o HSBC auxiliava seus clientes a sonegar impostos. Ao deixar o trabalho em 2008, ele levava na valise as informações de 100 mil clientes. Suas motivações para o vazamento, já apelidado de “Swissleak”, são controversas. Falciani explicou que sua atitude foi tomada ao perceber o mal que a sonegação fiscal causa à humanidade. Para o HSBC, os objetivos do ex-funcionário são menos nobres: ele queria ganhar dinheiro vendendo as informações.
A seu favor, o banco tem o fato de que Falciani tentou passar a lista adiante no Líbano. No ano seguinte, seu computador com os arquivos foi apreendido em uma operação policial no sul da França, e as informações foram pousar sobre a mesa de Christine Lagarde, então ministra das Finanças da França e atual diretora-gerente do Fundo Monetário Internacional. (FMI). Compartilhados pelo governo francês com autoridades fiscais de 13 países, entre eles Estados Unidos, Alemanha, Itália, Espanha, Índia e Argentina, os dados vazados por Falciani dispararam investigações ao redor do mundo.
Muitas delas ainda estão em curso, mas algumas já chegaram ao final. Nos Estados Unidos, por exemplo, o HSBC fechou um acordo com as autoridades fiscais e pagou US$ 1,9 bilhão em indenizações ao governo por ter facilitado a vida de clientes americanos muito ricos em suas estratégias para sonegar impostos. É a partir dessa lista, obtida pelo jornal francês Le Monde, que os jornalistas do ICIJ trabalharam. O ICIJ foi mais a fundo em sua investigação do que uma comissão de inquérito do Senado americano havia feito em 2012.
Os parlamentares dos Estados Unidos haviam constatado que o HSBC tinha controles frouxos em seu private suíço, permitindo que cartéis de drogas da América Latina lavassem centenas de milhões de dólares obtidos por meio do tráfico. O escritório do private bank nos Estados Unidos operou em conjunto com bancos na Arábia Saudita e em Bangladesh suspeitos de terem financiado a Al-Qaeda e outros grupos terroristas. Naquela ocasião, porém, os senadores não haviam tido acesso às informações de Falciani, e agora a investigação pode atingir novos patamares.
O que mais chama a atenção são nomes conhecidos, como os do ator Christian Slater e do cantor David Bowie, que têm pequenas somas aplicadas. No entanto, o verdadeiro problema são as grandes fortunas. Ao lado dos artistas e esportistas que têm todo o direito de pagar legalmente menos impostos – Bowie e Tina Turner são cidadãos suíços para isso – estão magnatas cujos patrimônios indicam algo suspeito. Nomes como os dos reis da Jordânia e do Marrocos, e o de um falecido banqueiro com negócios no Brasil, nos Estados Unidos e na Europa, o espanhol Emílio Botín.
Uma das maiores contas individuais é a de Alejandro Andrade, ex-secretário do Tesouro da Venezuela, que tinha quase US$ 700 milhões no banco. Embora as denúncias em si não sejam novas, elas provocaram muita controvérsia ao demonstrarem, na prática, como funcionam as estruturas de lavagem de dinheiro. Uma das informações que saltam aos olhos é a abundância de casos como o de Hanne Tox, senhora dinamarquesa de 57 anos. Em 2005, a referida senhora teria embarcado em um avião em Copenhague, hospedado-se em um hotel de luxo em Zurique e, no dia seguinte, após almoçar com o gerente do HSBC, passou pela agência e resgatou 100 mil coroas (US$ 16 mil) em dinheiro.
Um dia não exatamente normal para uma dona de casa, mas algo esperado tendo em vista que, meses antes, em uma reunião com o gerente, ela havia discutido a criação de uma companhia off-shore. “Pelas leis dinamarquesas, possuir uma conta não declarada no exterior é crime, e isso pode ser resolvido com uma off-shore”, escreveu o gerente. Ao todo, há 7.300 donas de casa, e outras 4.000 clientes listadas como “estudantes” e “sem profissão” na lista de Falciani. Uma delas é Mary Wells Lawrence. Hoje com 86 anos, ela fundou a agência Wells Rich Green em 1966 e foi a primeira mulher a dirigir uma empresa listada na Bolsa de Nova York.
Dificilmente pode ser considerada uma dona de casa convencional. Após negar as malfeitorias, o HSBC admitiu os problemas. “Reconhecemos que os padrões de compliance e due diligence no HSBC Private Bank na Suíça eram significativamente mais baixos do que são hoje”, informou o banco. As dificuldades não são novas. Em 2012, Stuart Gulliver, CEO do HSBC, lançou uma forte campanha de reestruturação que não apenas eliminou as atividades em mais de 30 países como também centralizou a administração.
“O Banco era administrado de maneira muito mais federativa, com as decisões sendo tomadas individualmente, em cada país”, informa a nota. Esse não é o primeiro episódio controverso na centenária trajetória do HSBC. Fundado em 1865, o banco ganhou muito dinheiro financiando o comércio entre a China e a Europa – as mercadorias incluíam ópio, e os lucros deram origem à expressão “negócio da China”. A partir de agora, o HSBC e os demais private banks deverão ser muito mais cautelosos e severos com seus clientes, evitando assim colher uma nova safra de denúncias.