15/01/2016 - 20:00
Aos 69 anos, o advogado carioca Marco Aurélio Mello está longe de pensar em aposentadoria. Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) desde 1990, quando foi indicado por seu primo, o ex-presidente Fernando Collor, Mello pretende ficar no cargo até completar os 75 anos, nova idade limite para os servidores públicos federais. Às vezes polêmico, Mello destacou-se por votos que, muitas vezes, contrariaram as opiniões da sociedade. O mais recente desses votos foi a favor do desmembramento das investigações da Lava Jato, retirando alguns dos processos da jurisdição do juiz Sérgio Moro, do Paraná. Mello não vê problemas nisso. “É função do STF agir às vezes de maneira contramajoritária, diferentemente dos anseios da sociedade”, afirma. Em uma entrevista à DINHEIRO, ele tratou da morosidade da Justiça e afirmou estar otimista com relação ao futuro do País. A seguir, os principais pontos da conversa:
DINHEIRO – A decisão do Supremo de desmembrar as investigações da Lava Jato frustrou as expectativas de muita gente, que preferia continuar contando com a eficiência do juiz Sérgio Moro. Por que o sr. votou a favor do desmembramento?
MARCO AURÉLIO MELLO – O dever maior do Supremo é guardar a ordem jurídica, especialmente a constitucional. Nós, às vezes, temos de ser contramajoritários. Quando o nosso enfoque é harmônico com os anseios da sociedade, nós somos aplaudidos. Quando é contrário, nós somos criticados. Mas nosso dever é com a ordem jurídica, não com as relações públicas. Por isso a nossa cadeira é vitalícia. Nesse caso, eu segui o voto do relator da Lava Jato, o ministro Teori Zavascki. Ele levantou a questão ao analisar as acusações contra a senadora Gleisi Hoffmann, e disse que o STF só tem competência para capitanear a investigação quanto à senadora, que possui foro privilegiado. Quanto aos demais envolvidos, a competência é da primeira instância da Justiça Federal, que seria o local da prática criminosa. Aí nós mandamos para São Paulo.
DINHEIRO –Tirando da jurisdição do juiz Sérgio Moro.
MELLO – O juiz Sérgio Moro vem realizando um trabalho primoroso. Mas, no Brasil, nós não temos apenas um juiz federal capaz de assim proceder. Há muitos outros que merecem os nossos elogios. Foi uma decisão técnica, embora não atendesse os anseios da população. Atribuo a eventual frustração ao fato de sermos carentes, em todas as esferas, de autoridades que sejam fidedignas. No passado recente, tivemos a atuação do ministro Joaquim Barbosa, e reconheço que ele atuou muito bem. O juiz Sérgio Moro é um novo herói desta sociedade tão carente de pessoas exemplares.
DINHEIRO – Nenhuma crítica ao trabalho dele?
MELLO – Não. Sua atuação, a da Polícia Federal e a do Ministério Público Federal, merecem o nosso reconhecimento. E mil vezes termos uma atuação extensiva do que uma acomodação. Porque na atuação extensiva, se alguns limites forem ultrapassados, é possível corrigir o erro de procedimento ou de julgamento mediante recurso.
DINHEIRO – Essa é uma crítica comum ao Judiciário, que o excesso de recursos torna os processos intermináves. O sr. concorda?
MELLO – Sim. Há um exagero de litigiosidade. Parece que no Brasil só se acredita em uma solução pelo Judiciário. Não se senta à mesa para buscar um entendimento, e isso sufoca e emperra a máquina judiciária. Aposta-se na própria morosidade da Justiça. O devedor consegue, por meio do recursos, protelar o desfecho do processo para as calendas gregas. Isso é péssimo em termos de paz social, em termos de segurança jurídica. Pre-cisaria haver a independência técnica do profissional da advocacia, para desaconselhar ao cliente a interposição de um recurso meramente protelatório. É ruim quando os advogados sucumbem aos interesses do cliente. Isso não ocorre nos Estados Unidos porque contratar um advogado é caro, e o cliente acaba buscando um acordo.
DINHEIRO – Outra crítica é que os tribunais decidem de formas diferentes sobre a mesma questão.
MELLO – Sim. Causa perplexidade que alguns tribunais do país decidam de forma tão conflitante. O direito é uniforme em todo o território nacional. Porém, essa uniformidade acaba esvaziada quando há decisões díspares diante dos mesmos fatos, o que é comum. Quando isso ocorre, é preciso que a jurisprudência seja uniformizada pelo Superior Tribunal de Justiça, o STJ. Como resultado, enfrentamos uma carga de processos invencível, e as decisões são morosas. A uniformização das decisões pelo STJ demora muito. Não é razoável que cada gabinete do STJ receba, em média, uma centena ou mais de novos processos por semana. Repito: por semana. Não há tribunal superior com essa carga de trabalho em nenhum lugar do mundo. Isso gera insegurança jurídica. Essa é uma das causas de afastarmos os investimentos e os empreendedores estrangeiros.
DINHEIRO – A Justiça afasta investidores?
MELLO – O estrangeiro fica muito assustado com o sistema cartorário nacional, com a burocratização com as formalidades a serem atendidas para tocar-se este ou aquele negócio. Além disso, há a instabilidade política, a existência de um verdadeiro impasse. Executivo e Legislativo não se entendem.
DINHEIRO – O que o Judiciário po-deira fazer com relação à crise?
MELLO – Muito pouco, porque o Judiciário não está engajado em qualquer política governamental. O Judiciário é um órgão independente, que atua a partir do direito positivo, e mesmo assim só quando provocado por uma parte que se sinta prejudicada pela situação. Não nos cabe substituir o Executivo e o Legislativo.
DINHEIRO – Mesmo assim, o Judi-ciário, e em breve o Supremo, terão de analisar os processos da Lava Jato. O que o sr. espera?
MELLO – Vejo todo esse processo como muito positivo. O Mensalão foi emblemático, pois sinalizou para a sociedade que a lei vale para todos, que processo não tem capa, processo tem conteúdo. Foram condenados ex-ministro chefe da Casa Civil, presidentes de partidos, tesoureiros de partidos, banqueiros, empresários. Isso ocorreu também graças a uma imprensa livre, que é indispensável à democracia e às instituições.
DINHEIRO – As condenações do Mensalão fizeram vários escritórios de advocacia guardarem luto cerrado por alguns meses…
MELLO – Eu reconheço que a Lava Jato e, antes dela, o Mensalão, abriram um mercado muito promissor para os advogados criminalistas. Quando eu era estudante dizia-se que o crime não compensava. Agora compensa, não digo a prática do crime, mas sim a defesa do criminoso. Quando assumi a presidência do Tribunal Superior Eleitoral em 2006, fui muito duro em meu discurso de posse. Apontei que tínhamos o maior escândalo da história da República. Hoje, diante das proporções da Lava Jato, o Mensalão poderia ser apreciado por um juizado de pequenas causas. Nos deparamos com a corrupção no atacado. Mesmo assim, há sinais promissores.
DINHEIRO – Quais?
MELLO – Há a sinalização de dias melhores para o Brasil. A impunidade tende a desaparecer. Temos um escancaramento das situações e há uma cobrança maior da sociedade quanto à atuação das instituições, em especial o Ministério Público Federal (MPF), a Polícia Federal (PF) e a magistratura. Se imaginou que o Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, controlaria a PF e o Ministério Público para que esses órgãos não cumprissem os seus deveres. A lei vale para todos, o tratamento igualitário está na Constituição Federal. Isso é básico. Não se julga o cargo, mas quem o ocupa. No Mensalão, muitos advogados de defesa apostaram no taco absolutório do Supremo. Os poucos deputados que foram julgados em 2011 contavam com a absolvição, mas, diante das provas, nós nos pronunciamos pela condenção. Se eles tivessem renunciado aos mandatos antes, seus processos teriam baixado para a primeira instância. Hoje todos estão colocando as barbas de molho, temerosos de uma perseguição criminal.
DINHEIRO – Isso passa, ou veio para ficar?
MELLO – Acredito que tenha vindo para ficar, tendo em vista os novos valores. Pode ser que não seja algo a ser desfrutado pela nossa geração, talvez seja apenas para a geração seguinte, mas as notícias correm muito rapidamente. Quem ocupa um cargo público se vê compelido a atuar, para não ser acusado de prevaricação. Isso vale para o procurador, para o delegado e, principalmente, para o juiz de primeira instância. Claro que sou um crítico do cenário. Mas, diante das condenações do Mensalão, diante das decisões do juiz Sérgio Moro, acredito que os novos tempos serão diferentes. O que podemos presumir dos homens públicos, que eles continuem delinquindo? Não, acredito que eles adotem a postura do homem médio, integrado à sociedade, que é a de cumprir a lei. Paga-se um preço módico, que está ao alcance de todos por viver em um estado democrático de direito, que é o respeito irrestrito ao arcabouço normativo. Não digo uma postura exemplar, mas sim uma postura correta do cidadão. Os homens públicos agora sabem que ocupam cargos para servir, não para se servirem, eles e seus familiares.
DINHEIRO – O sr. está no Supremo desde 1990. Pretende se aposentar?
MELLO – Estou com 69 anos, e agora ganhei o direito de permanecer no cargo por mais cinco anos, graças à chamada “PEC da Bengala.” Espero não precisar de uma bengala, mas não pretendo deixar meu cargo. Não concebo que alguém vire as costas a uma cadeira no Supremo. O STF cassa atos do Presidente da República, declara a inconstitucionalidade de leis aprovadas pelo Congresso Nacional e tem a última palavra sobre o direito positivo. Tem um poder incrível.
DINHEIRO – Em breve o Supremo terá de dedicar mais e mais tempo ao processo de impeachment. Qual sua expectativa?
MELLO – O processo poderá chegar ao Supremo como qualquer processo em que uma das partes se sinta prejudicada. A Presidente da República pode servir-se do nosso protocolo sem problemas. Precisamos nos lembrar que o impeachment não é estritamente político. O Congresso não afasta um presidente simplesmente por falta de sustentação política. A rejeição das contas pelo Tribunal de Contas da União é um simples parecer. A decisão final cabe ao Congresso, se ele vier a rejeitar as contas, glosando-as, decidindo por um desvio inerente à atuação no cargo, aí a coisa se complica.
DINHEIRO –O senhor acredita que o impeachment pode ocorrer?
MELLO – É possível, muito embora, na minha idade, eu já não acredite mais em Papai Noel.