A oportunidade de estar cara a cara com grandes autores, de participar de debates e de oficinas, de assistir a apresentações musicais, a peças de teatro e a tantas outras atividades criativas provocou uma espécie de catarse coletiva no público da Flip, realizada este ano entre os dias 23 e 27 de novembro. Depois de anos de pandemia e da destruição sistemática da cultura pelo governo Bolsonaro, constatar que a festa dos livros de Paraty voltou em grande estilo foi algo tão poderoso quanto a emoção de gritar gooool a cada vez que Richarlison estufou as redes em sua estreia na Copa do Catar.

Na Flip não há disputa entre países nem taça a ser erguida. O que atrai o público é a oportunidade de compreender melhor as ideias, as escolhas e o processo criativo de autores dos mais variados gêneros e estilos, do cordel ao terror, da poesia a versões brasileiras de Harry Potter. Há espaço para escritores consagrados, para estreantes na profissão e para quem está no meio do caminho. Para o público, além de ouvir o que essa gente tem a dizer, existe a chance de conseguir autógrafo de um craque no campo das letras. Mas nem o fã mais fervoroso poderia dizer que a alegria de ter um exemplar com dedicatória supera o sentimento libertário que é estar em meio a tamanha concentração de cabeças pensantes.

A Flip é o território de quem sabe se deliciar com a leitura. De quem compreende o quanto a Lei Rouanet já fez pelo Brasil e jamais a acusaria de ser uma mamata para a classe artística. Por isso a estranheza de ver os cartazes oficiais do evento com a lista de patrocinadores e o crédito de realização para o Governo Federal, por meio da Secretaria Especial de Cultura do Ministério do Turismo. Mas, assim como a camisa da seleção canarinho pode e deve ser usada por toda a torcida (e não apenas como traje oficial em protestos antipetistas ou pró-Bolsonaro), o Estado tem a obrigação constitucional de promover a Cultura, por mais que a direita negue essa responsabilidade.

Neste ano a Flip homenageou a escritora maranhense Maria Firmina dos Reis (1822-1917), considerada a primeira romancista negra do Brasil. Abolicionista, ela publicou em 1959 o livro Úrsula, cuja trama narra um triângulo amoroso de pessoas negras que questionam o sistema escravocrata. Conhecer a autora e sua obra é extremamente oportuno para o momento que o País atravessa. E mesmo quem não leu nada de Maria Firmina teve, na Flip, acesso a trechos do que ela escreveu por meio de projeções e de leituras.

Uma declamação de um trecho da obra de Maria Firmina precedeu a mesa redonda que teve por tema justamente os 20 anos da Flip. Dela participaram o brasileiro Bernardo Carvalho, autor de 12 livros (o mais recente, O Último Gozo do Mundo, trata da realidade instaurada pela pandemia) e a britânica Pauline Melville, cuja obra não está disponível em português. Elogiada por Salman Rushdie, autor de Versículos Satânicos, ela abriu sua participação levando solidariedade ao escritor, vítima de um ataque a facadas nos Estados Unidos em agosto deste ano. Em 1988, o aiatolá iraniano Ruhollah Khomeini pedira a morte de Rushdie, que por muitos anos teve de viver recluso. Ele sobreviveu aos ferimentos do atentado ­sofrido quando daria uma palestra. O caso serviu de mote também para a fala de Carvalho. Segundo o autor e colunista da Folha de S.Paulo, foi a autoridade da palavra do aiatolá que motivou alguém a cumpri-la. Para ele, a palavra da literatura, por sua vez, não é autoritária. “É a da ambiguidade”, pois faz o elogio da desautorização, colocando em dúvida quem fala. “Ela não é assertiva e está justamente aí sua força política”, afirmou.

Talvez por celebrar a literatura, com sua ambiguidade e força política é que a Flip tenha se tornado um território mágico, quase onírico. Neste fim de governo negacionista e ignorante, a festa literária foi ainda mais simbólica. Celebrou a passagem de uma era, de um presidente que fez e faz o que pode para desacreditar e empobrecer a ciência, a cultura e o jornalismo. Prova disso foi o corte de R$ 1,7 bilhão anunciado esta semana na Educação. Como bem lembrado pelo filósofo Renato Janine Ribeiro na mesa O que Você Pode Fazer pela Democracia Brasileira?, promovida pelo Sesc na Flip, a direita ataca a ciência e o jornalismo porque ambos divulgam verdades. A literatura vai além. Não por acaso tantas ditaduras queimaram livros. Eles libertam a mente, o espírito e até o corpo, como prova a Flip.

Celso Masson é diretor de núcleo da DINHEIRO