15/01/2016 - 20:00
Quando assumiu a presidência do Banco Central, em janeiro de 2011, o funcionário de carreira Alexandre Tombini não gozava do mesmo prestígio de seus antecessores, Armínio Fraga e Henrique Meirelles. O seu desempenho à frente do BC, é claro, poderia alçá-lo a esse patamar. Cinco anos depois, no entanto, o suposto guardião da moeda acumula 100% de resultados inflacionários acima do centro da meta (4,50%), sendo que um deles foi no teto (6,50%) e o mais recente, em 2015, representou um estouro astronômico na casa de dois dígitos (10,67%).
Sob qualquer ângulo que se observe, a gestão de Tombini é negativa. Os analistas nunca acreditaram na sua autonomia, ainda que informal, e a perda de credibilidade atingiu o ápice no último período eleitoral. Ao longo de 2014, as expectativas inflacionárias já apontavam para o teto da meta, mas o BC ignorou os alertas durante quase oito meses, decidindo elevar juros apenas três dias após a reeleição da presidente Dilma Rousseff. Agora, numa tentativa tardia de resgatar a confiança perdida, o BC ameaça apertar a política monetária e jogar nas costas da sociedade a conta dos seus erros.
Num olhar simplista, a inflação elevada de 2015, por si só, seria motivo mais do que suficiente para uma alta dos juros na reunião do Comitê de Política Monetária (Copom), que acontecerá na quarta-feira 20. Afinal de contas, o objetivo número um da política monetária é esfriar os preços em momentos de alta. A decisão atual, no entanto, é muito mais complexa do que sugerem os manuais de economia. O País vive uma recessão inédita – uma queda prevista no PIB de 7% no biênio 2015-2016 –, cujos efeitos no mundo real ainda estão longe de ser dimensionados.
O que se sabe, até agora, é que o índice de desemprego caminha rapidamente para o patamar de dois dígitos e que 3,7 milhões de pessoas já migraram da classe C para as classes D e E. A destruição de empregos com carteira de trabalho assinada e o crescimento da informalidade são dois fenômenos presentes nas grandes metrópoles, numa clara deterioração das conquistas obtidas na primeira década deste século. Outra consequência do aperto monetário é o encarecimento do crédito. Segundo pesquisa da Associação Nacional dos Executivos de Finanças, Administração e Contabilidade (Anefac), os juros dos financiamentos para pessoas físicas e jurídicas sobem há 15 meses consecutivos e estão, na média, no maior patamar desde 2009.
Portanto, o efeito prático da alta de juros, iniciada após a reeleição de Dilma, já chegou ao dia a dia do comércio e da indústria, que dependem do crédito para vender e produzir. “O Banco Central exagerou ao elevar os juros básicos para 14,25% no ano passado”, afirma Julio Sergio Gomes de Almeida, ex-secretário de política econômica do Ministério da Fazenda. “O BC subestimou o tamanho da recessão econômica.” O encarecimento dos financiamentos também pode sufocar milhões de famílias que estão endividadas.
Sem alternativas para trocar uma dívida mais cara por outra mais barata, elas podem engrossar a lista dos inadimplentes. Não à toa, os bancos pisaram no freio e passaram a negar empréstimos aos clientes com saúde financeira ameaçada. “De cada 10 consumidores que entram numa concessionária para comprar um veículo, apenas três recebem o financiamento”, diz Alarico Assumpção, presidente da Federação Nacional da Distribuição de Veículos Automotores (Fenabrave). “Assim fica impossível vender carro.”
Se a recessão econômica é uma triste realidade e o crédito já encareceu, por que a inflação permanece tão alta? Esse aparente mistério tem várias explicações. Uma delas é o fato de que boa parte das altas dos preços em 2015 veio de itens administrados pelo governo, como gasolina, energia elétrica e transporte público. Por definição, são componentes imunes aos juros. Além disso, o País vivenciou uma maxidesvalorização cambial de quase 50%, com reflexos diretos nos produtos importados. Isso ocorreu apesar de o Brasil ser o maior pagador de juro real do mundo.
Para as empresas que utilizam insumos comprados no exterior, a alta do dólar significa uma elevação de custos que, em muitos casos, é repassada ao preço final, piorando a inflação. Os alimentos também pesaram no bolso dos brasileiros, seja por questões climáticas ou por alta nos preços dos insumos agrícolas, normalmente dolarizados. “O problema é que não se combate preço de tomate nem de energia elétrica com taxa de juros”, diz Antonio Corrêa de Lacerda, professor do departamento de Economia da PUC-SP.
Outro fenômeno importante, que não deve ser ignorado por quem está defendendo a alta de juros, é o fechamento de muitas empresas por conta da recessão econômica. Isso significa que, em alguns segmentos, a concorrência já diminuiu e, por tabela, aumentou o poder de mercado dos sobreviventes, que conseguem impor reajuste de preços mesmo em plena recessão. “A loja que não fecha as portas pega o freguês do antigo concorrente e consegue repassar a alta de custos”, diz José Francisco de Lima Gonçalves, economista-chefe do Banco Fator.
Sendo assim, se o BC derrubar ainda mais a economia, a formação de oligopólios poderá se intensificar. Existe ainda mais um ponto que ajuda a entender por que a inflação no Brasil é tão alta em meio a um processo de forte encolhimento do PIB. Trata-se da indexação, um mal cultivado nos tempos de hiperinflação do qual o País não consegue se livrar. Emblemático, o reajuste do salário mínimo resume o tamanho da encrenca. No dia 1º de janeiro, o valor passou de R$ 788 para R$ 880, uma alta de 11,67%, que inclui a variação do PIB de 2014 mais a inflação de 2015.
“Não faz sentido um reajuste tão grande num ambiente de queda do PIB e da produtividade”, diz Flávio Castelo Branco, gerente-executivo de Política Econômica da Confederação Nacional da Indústria (CNI). “O mais correto teria sido a utilização da meta de inflação como indexador e, no futuro, poderia ser discutida alguma eventual perda.” Engana-se, portanto, quem acha que mexer neste tipo de regra significa prejudicar os menos favorecidos. A indexação realimenta a inflação e, de forma cruel e silenciosa, corrói justamente a renda das famílias mais carentes, que não sabem se proteger no mercado financeiro.
DOMINÂNCIA FISCAL Ao contrário do Federal Reserve (o BC americano), que é obrigado a acompanhar a inflação e o desemprego antes de tomar suas decisões, o Banco Central do Brasil tem, por lei, apenas uma missão: controlar os preços. “Como a política fiscal do governo não está ajudando, o Banco Central tem de elevar os juros”, diz Sérgio Vale, economista-chefe da MB Associados. “É como se o BC estivesse sozinho nesta batalha.” Neste sentido, é compreensível que Tombini tenha sinalizado o aperto monetário na carta aberta enviada no dia 8 de janeiro ao ministro da Fazenda, Nelson Barbosa, na qual explica o estouro da meta em 2015.
No documento, fica claro que a falta de controle dos gastos públicos atrapalha o combate à inflação. Detalhe: em várias atas do Copom, o BC vinha registrando que a política fiscal caminhava da zona de neutralidade rumo ao campo contracionista. Ou errou por acreditar no governo, ou fingiu que não viu a deterioração fiscal. Neste contexto, ainda que os diretores do Copom sejam insensíveis ao drama social dos brasileiros e foquem apenas na inflação, eles não podem desconhecer o impacto que a alta de juros terá nas contas públicas.
Cada ponto percentual a mais de juros custa R$ 30 bilhões ao erário, por ano. É o equivalente ao orçamento anual do Bolsa Família. É justamente esse tema, tecnicamente chamado de dominância fiscal, que tem fomentado acalorados debates entre economistas, que não se resumem mais à polarização de opiniões entre desenvolvimentistas e monetaristas. “Como o coração do problema é fiscal, subir juros a essa altura do campeonato só piora as coisas”, diz Gonçalves, do Fator. Em poucas palavras, a dominância fiscal é a situação em que a política monetária deixa de ter eficácia por conta da desordem fiscal.
Como os juros altos aumentam a dívida bruta, já que parte dos títulos públicos é atrelada à taxa Selic, o aperto monetário acaba sendo um tiro no pé. Apenas em 2015, o governo torrou R$ 251 bilhões com o pagamento do serviço da dívida. Com medo da insolvência, os investidores tiram dinheiro do País e a consequente desvalorização cambial pressiona a inflação. Portanto, o efeito final da elevação da Selic acaba sendo o oposto daquele pretendido pela autoridade monetária. “A alta de juros também piora o resultado primário, pois derruba a arrecadação do governo na medida em que aprofunda a recessão”, diz Lacerda.
É importante salientar que o Banco Central não concorda com a análise de que o País está num processo de dominância fiscal. Em evento da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), em dezembro, Tombini afirmou que os mecanismos de transmissão da política monetária estão “em pleno funcionamento”. O problema, segundo os especialistas ouvidos pela DINHEIRO, é que o governo não deve cumprir a meta de superávit primário de 0,5% do PIB (R$ 30,5 bilhões) neste ano, o que vai atrapalhar a missão do Banco Central.
“Para ganhar a guerra das expectativas inflacionárias, o governo precisa sinalizar uma política fiscal com superávits primários mais robustos ao longo de vários anos”, diz Guilherme Mercês, gerente de Ambiente de Negócios e Infraestrutura do Sistema Firjan. “Não faz o menor sentido subir juros para combater a atual inflação.” Com a política fiscal em frangalhos, as expectativas inflacionárias podem se distanciar do teto da meta, de 6,50%. Porém, até agora, ninguém acredita numa repetição do IPCA na casa dos dois dígitos, em 2016.
A queda das commodities vai ajudar e, além disso, os especialistas avaliam que a recessão, mais cedo ou mais tarde, vai fazer o “serviço sujo” de derrubar os preços. “Os dissídios coletivos, que são concentrados em março e abril, devem ser mais comedidos”, diz Castelo Branco, da CNI. Até o início da noite da quarta-feira 20, quando o Copom vai anunciar o veredicto final, haverá pressão de todos os lados. Os rentistas, que ganham dinheiro com taxa de juros, empunham a bandeira do aperto monetário. Já empresários e centrais sindicais são contrários ao encarecimento do crédito.
Com a popularidade em baixa, a presidente Dilma utiliza emissários para mandar recados ao BC, embora garanta jamais interferir no assunto. Um verdadeiro guardião da moeda não deve se deixar influenciar por pressões externas, nem do setor público, nem do privado. Mas um Banco Central que almeja ser respeitado pela sociedade não pode ignorar a realidade das ruas. Se algum dos oito diretores do Copom tem dúvidas sobre a recessão, ainda há tempo de passear em algum centro comercial e conversar com a população. A sabedoria da dona de casa pode valer muito mais que 100 páginas de um livro-texto.