Na economia, uma regra é imutável: despesas não podem superar receitas. Menos nos governos brasileiros. Se o plano de Lula é investir mais em tudo, não há chance de o gasto público cair. Resta aumentar a receita. E a proposta de Arcabouço Fiscal do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, prova isso. Para atingir uma capacidade extra de investimentos na casa dos R$ 150 bilhões, seria necessário elevar a arrecadação na ordem de R$ 110 bilhões. Para diminuir o juro da dívida pública em R$ 300 bilhões, alguém precisará ajudar o governo a fechar as contas no azul. E esse socorro virá (na teoria) com o fim de subsídios, inclusão de setores hoje não tributados e revisões de renúncia fiscal a setores empresariais.

Se essa equação parece exata no ponto de vista da contabilidade, é preciso lembrar que a economia ainda é uma ciência humana. E aí começam os problemas. O Congresso e os empresários, beneficiados pelo Estado até agora, não vão ceder sem uma boa briga. “O que queremos é reaver a perda de arrecadação que historicamente o País oferece para aliviar alguns setores”, disse Haddad à DINHEIRO. “O Brasil precisa de investimento.” A seguir, conheça os efeitos, as dinâmicas, as reações e as consequências do tema em três esferas: dentro do governo, no Congresso e entre empresários & o mercado financeiro.

O bom é inimigo do ótimo

GASTANDO MAIS Presidente Lula tem apagado incêndios do antecessor, caso da devastação do povo Yanomami, o que requer recurso público disponível para emergências. (Crédito:Ricardo Stuckert )

Um conhecido liberal, lá nos anos 1980, afirmou que “se a coisa se move, taxe-a; se continuar em movimento, regule-a; se ela parar de se mover, subsidie-a”. Ex-ator de Hollywood e presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan nunca teve em Luiz Inácio Lula da Silva um discípulo, mas isso mudou de figura quando o estrangulamento das contas públicas exigiu que o petista precisasse confrontar ao menos parte do Estado que distribui subsídios que o PT ajudou a construir no Brasil. Aí entra o dilema: perseguir o equilíbrio fiscal que marcou seus dois primeiros governos ou atuar na linha expansionista que ele quer deixar como marca em seu terceiro mandato? Era fato que o Teto de Gastos, criado no governo Michel Temer, seria jogado no lixo. O tema foi, aliás, o único que uniu Bolsonaro e Lula na campanha de 2022, já que ambos demonizavam o controle das despesas públicas.

Ao produzir um corte seco e arbitrário dos gastos do governo central, o Teto passou a retrair investimentos e produzir outros efeitos colaterais num País que sofre de descontrole fiscal crônico. Até um de seus criadores, Henrique Meirelles, chegou a declarar que o Teto de Gastos precisava de ajustes. Por esse motivo, todos esperavam por seu substituto, o Arcabouço Fiscal. E ele nasceu. “De forma geral, é um projeto positivo, porque no fundo não há solução perfeita”, disse Felipe Salto, sócio da Warren Rena e ex-secretário da Fazenda do Estado de São Paulo.
Sob a ótica de capacidade de execução do plano, Salto afirma que em 2023 o

Orçamento do governo federal recebeu influência de receitas não recorrentes, como a PEC da transição, o que prejudica o cálculo. Seria mais preciso olhar para 2024, quando Salto prevê que a alta da despesa primária seja de 3,2%, o que já supera o teto de 2,2% da banda limite de incremento no investimento previsto pelo Arcabouço Fiscal. Se a cifra ficar entre 2% e 2,5%, o governo precisaria arrecadar em torno de R$ 110 bilhões a mais para viabilizar os investimentos. Segundo Salto, mesmo sem essas receitas adicionais, a aplicação da regra de gasto (sob a premissa de crescimento do PIB pouco abaixo de 2%, e a receita caminhando próximo disso), “já seria suficiente para produzir uma trajetória muito melhor de dívida do que na ausência da regra”.
Um levantamento do Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades (Made), da FEA-USP, apontou como se comportariam os investimentos públicos se a regra do arcabouço já fosse utilizada nos governos Lula, Dilma, Temer e Bolsonaro. Pela projeção, os governos Lula I e II e Dilma I teriam investido menos.

Em compensação, teria havido aumento relevante de investimento na recessão e crises subsequentes que se seguiram. Segundo Luciana Carvalho, economista da USP e cofundadora da Made, se o governo considerasse as arrecadações não recorrentes e surpresas positivas entre 2002 e 2014 como gastos fora da banda, o volume de investimento seria maior que o registrado. Para o futuro, ela afirma que em anos de crescimento maior que o esperado, a trajetória de relação gasto x PIB tende a cair, mas menos do que ocorre sob o Teto de Gastos. “Se a arrecadação sobe, o governo recupera esse investimento nos anos seguintes, gatilho que não existia no Teto”, disse. É com essa premissa que Haddad pretende emplacar uma sequência de medidas. “Queremos destravar o crédito, rever a questão tributária e tornar o Brasil um lugar mais justo para empresários de todos os portes, e pessoas de todas as classes sociais”.

As duas Casas no caminho

OLHAR LEGISLATIVO Presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, e da Câmara, Arthur Lira, disseram que o Congresso vai deixar seu DNA na proposta fiscal. (Crédito:Cristiano Mariz)

Para fazer o Arcabouço Fiscal andar, o ministro da Fazenda precisa negociar com o Congresso. O caminho não será fácil. Ainda há dúvidas (muitas delas mantidas pelo governo como estratégia) sobre como fica essa conta de arrecadação extra na casa dos R$ 110 bilhões. Os lobistas de plantão começaram a peregrinar em Brasília. Representantes do agronegócio, da construção civil e dos serviços digitais já cobram de seus políticos aliados uma postura sobre o assunto. Para evitar o burburinho, o governo adiou o envio do texto ao Legislativo, previsto inicialmente para o final de março. A explicação, segundo Haddad e a ministra do Planejamento, Simone Tebet, é que a proposta já irá abarcar uma série de outras medidas de estimulo à economia, revisão de subsídios e inclusão de empresas e setores que estão em um “limbo tributário”.

De acordo com Haddad, o Congresso irá aprovar de forma conjunta, além das métricas de banda, o pacote de gatilhos, tetos e pisos de investimentos provenientes do novo Arcabouço, com receitas vindas, por exemplo, da taxação de apostas eletrônicas (que poderia arrecadar até R$ 15 bilhões por ano) e a taxação de e-commerces que driblam as regras da Receita Federal não pagando impostos, o que o ministro chamou de “contrabando”. A previsão é arrecadar de R$ 7 bilhões a R$ 8 bilhões extras. Além disso, haverá um dispositivo de proibição para que empresas com incentivos fiscais concedidos por estados (por meio de ICMS) abatam esse crédito da base de cálculo de impostos federais. O crédito só poderá ser deduzido se for destinado a investimentos, e não a custeio. A medida pode render de R$ 85 bilhões a R$ 90 bilhões. Se aprovado da forma como for enviada (o que é bastante difícil), Haddad conseguiria os R$ 110 bilhões necessários para custear o aumento do investimento do governo federal em 2023.

Mas entre o Palácio do Planalto e o Congresso Nacional existe um caminho de pedra e bastante quente, tal qual o desenho da Praça dos Três Poderes. O principal deles, nesse momento, é Arthur Lira, presidente da Câmara dos Deputados e que tem demonstrado interesse em dar celeridade ao texto, mas desde que o governo também atenda algumas demandas da Casa. A maior participação em cargos do governo, a discussão de recursos via emenda (inclusive dos valores liberados pelo arcabouço) estão na linha de frente das demandas na Câmara. Essa confluência de fatores ajudaria a fazer inimigos históricos do PT (como PSDB, Podemos e até membros do PL de Bolsonaro) a votar pela aprovação. A medida é necessária porque o governo precisará de maioria absoluta em dois turnos de votação para aprovação da Lei.

Ricardo Melo, consultor do MDB na CCJ do Senado, afirmou que o texto deve vir sem grandes problemas, mas haverá uma barganha para que alguns pontos sejam explicitados. “O que fazer com arrecadação vinda de privatizações e venda de imóveis?”, questionou, assim como os cálculos que o Congresso precisará fazer para montar a Lei de Diretrizes Orçamentárias e qual será a punição para infrações às novas regras. “Todas essas medidas devem sair dos legisladores da República”, afirmou.

Animados e cautelosos

BENFÍCIO INDIRETO Apesar do risco do aumento de impostos no agronegócio, o setor vê um horizonte positivo do Arcabouço sobre a inflação e os juros. (Crédito:Istock)

A pesar da tensão em parte da cadeia produtiva, a definição do Arcabouço Fiscal foi bem vista por setores que esperavam a medida sob a perspectiva de redução da taxa de juros. O otimismo, no entanto, não deixa de lado a cautela. O fato de haver uma regra para os gastos do governo serviu de alento para quem temia um aumento desenfreado das despesas federais nos próximos anos. É o caso, por exemplo, da Federação Brasileira de Bancos (Febraban). A entidade que congrega os bancos definiu o Arcabouço apresentado pela equipe econômica como “um passo importante e meritório”. Em nota, o presidente da entidade, Isaac Sidney, disse que enxerga como positivo um horizonte de estabilidade da dívida “ao definir regras para a gestão das finanças públicas que sejam ao mesmo tempo razoavelmente ambiciosas, mas críveis em sua execução e que procuram combinar as prioridades sociais do País com o necessário controle da expansão dos gastos públicos”.

Haddad também recebeu o apoio do presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Josué Gomes da Silva. Embora tenha sido discreto em seus elogios, ele afirmou, às vésperas do anúncio, que a “indústria trará em dobro qualquer perda da arrecadação que possa existir, porque vai corresponder ao aumento da produtividade e geração de empregos.”

Mesmo com certo temor de uma eventual alta da carga de impostos (possibilidade já descartada pelo ministro Haddad), algumas lideranças do agro comemoraram o definição do arcabouço. Tirso Meirelles, vice-presidente da Federação da Agricultura e Pecuária do Estado de São Paulo (Faesp), afirmou que todo o ecossistema do agronegócio pode ser beneficiado com as novas regras fiscais porque pode ajudar a conter a inflação e abrir caminho para a redução da taxa básica de juros. “Sabemos que o Arcabouço em si não é suficiente para inverter a curva de juros, pois é preciso que o governo mostre austeridade e compromisso com o controle da trajetória da dívida pública”, afirmou Meirelles. “O que precisamos agora é aperfeiçoar o que foi apresentado, o que poderá ser feito na tramitação do Congresso Nacional”, disse.

Entre os agentes do mercado financeiro, depois de um otimismo inicial, há maior ponderação. Essa é a avaliação geral de 185 gestores, traders, estrategistas e economistas do mercado financeiro ouvidos em uma pesquisa realizada pela Warren Rena divulgada na terça-feira (4). Na opinião de 49%, o novo Arcabouço Fiscal não surpreendeu nem positiva nem negativamente. Para 74% dos entrevistados pela Warren Rena, no entanto, a limitação de gastos a 70% do aumento das receitas no ano anterior não é adequada. Um termômetro para o mercado, o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, afirmou na quarta-feira (5) que o texto foi bom e serve como exemplo do esforço do governo em reduzir gastos, fala que deve acalmar momentaneamente a mão invisível do mercado.
(Colaborou Jaqueline Mendes)

5 perguntas para Fernando Haddad:
“Não vamos elevar impostos. Não há conversas sobre criação de qualquer tributo. Precisamos de isonomia, previsibilidade e garantias para que o Brasil volte a ter investimento e cresça”

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Muito tem se falado sobre aumento de impostos em um momento que os empresários brasileiros clamam por redução da carga. Como elevar a arrecadação sem elevar impostos?
Não vamos elevar impostos. Não há conversas sobre criação de qualquer tributo. O que queremos é reaver a perda de arrecadação que historicamente o País oferece para aliviar alguns setores. Quem estava à margem do sistema tributário precisa deixar de estar também. Precisamos de isonomia, previsibilidade e garantias para que o Brasil volte a ter investimento e cresça.

O senhor pode citar algum exemplo de setores que transitam nessa “margem”?
É urgente, por exemplo, tomar medidas que persigam o combate às compras eletrônicas em que empresas se fazem passar por remessa física como forma de burlar a legislação tributária e não pagar impostos. Isso gera um problema de arrecadação para o governo federal e também cria uma concorrência desleal que distorce e que afeta diretamente o negócio e o crescimento de empresas brasileiras e estrangeiras que operam aqui no ramo de vestuário.

Quando olhamos para o que o mundo tem feito, qual lição o Brasil pode aprender?
Notamos que há um esforço mundial para acabar com os abusos tributários que distorcem a concorrência e o dinamismo necessário para economia. Esse é um problema global e cada país tem encontrado formas de lidar com isso. Por aqui precisamos entender quais são os jabutis tributários para garantir mais justiça e conseguir atender ás demandas do Executivo e ás demandas da sociedade civil.

Por que o texto final ainda não foi enviado ao Congresso? Já há uma previsão de data?
Será antes do dia 15 de abril. Decidimos que o Arcabouço vai ser enviado ao Congresso Nacional com as medidas de recuperação da base fiscal. As equipes da Fazenda, do Planejamento e da Casa Civil precisam ajustar a redação. Trabalhar no final de semana. Como não tem sessão no Congresso, a equipe irá aproveitar esses dias para calibrar. Será o tempo de ajustar as propostas para criar uma solução que atenda às necessidades do Brasil.

Como tem sido a relação do senhor com o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto?
Tivemos nesta semana uma conversa muito produtiva. Tratamos sobre diversos assuntos sem uma agenda específica. Por exemplo, sobre o parcelamento de débito pelo Pix, que é uma demanda que o banco tem trabalhado e pode ser uma grande inovação para o nosso sistema bancário. Também estamos alinhando outros temas, para chegarmos a um denominador comum. Ninguém é o dono da história, o sabe-tudo. Todos nós vamos aprendendo no processo.