Havia os que queriam o cargo — podem colocar os nomes de Aloizio Mercadante a Henrique Meirelles na lista. Havia os que concorriam ao cargo — como o vice-presidente Geraldo Alckmin. E havia o preferido de Lula para o cargo. E este é Fernando Haddad. A cadeira ministerial mais cobiçada do novo governo terá o ex-prefeito de São Paulo como titular. O Ministério da Economia (que voltará a ser da Fazenda) não será mais o castelo de cartas czarista de Paulo Guedes, mas ainda assim concentrará muito poder. Mais que isso: será nevrálgico para o sucesso do mandato Lula III, que sabe bem disso. A primeira questão foi a aceitação de seu nome pelo mercado. Desde que começou a ser ventilado, muita gente quis fazer marola, enxergando em Haddad um irresponsável e neófito econômico. Nada mais distante do professor acostumado a se referenciar na pesquisa e no conhecimento, ouvir os múltiplos ângulos e ser consistente. Por esse motivo, quem entende do grosso do dinheiro avaliza a escolha. “Sinaliza o perfil de alguém que olha para o equilíbrio entre as demandas sociais urgentes e a responsabilidade fiscal necessária”, afirmou o presidente do Conselho de Administração do Bradesco, Luiz Carlos Trabuco, assim que oficializaram a nomeação. “Vai mediar os conflitos na condução econômica pela via do pragmatismo.”

É por aí que Haddad jogará o jogo. O mercado do dinheiro grosso já estava assimilado com a escolha. No começo do mês, ainda antes da nomeação do novo ministro, o CEO do Itaú Unibanco Milton Maluhy Filho havia afirmado: “a gente fala que o social e o fiscal têm de andar de mãos dadas”. Já era uma senha da precificação de Haddad, que parece ter a lição decorada. “Não estamos em um momento em que a expansão fiscal vá ajudar a economia”, disse o futuro ministro na quarta-feira (14), em entrevista à Globo News. “Estamos pegando uma situação fiscal com um compromisso herdado, e não vamos desamparar as pessoas.” Traduzido, é o social com o fiscal. A fala bate de frente com gente de peso do agora extinto time de transição, como Nelson Barbosa, um dos mentores da fracassada estratégia do governo Dilma Rousseff II para a economia.

SANGUE DE BANQUEIRO Gabriel Galípolo, ex-presidente do Banco Fator, vai assumir a diretoria-executiva do Ministério da Fazenda e será o número 2 da Pasta. (Crédito: Ton Molina)

Haddad sabe que terá de transitar política e economicamente nesse tipo de campo minado. A ele compete a duríssima missão de reativar a economia de modo célere, desviar dos erros cometidos pelo PT na gestão de recursos públicos nos governos passados e ainda se fortalecer a ponto de surgir como uma liderança à esquerda. O terceiro desafio será resultado do sucesso (ou não) dos dois primeiros.

Em suas falas já como futuro ministro da Fazenda, Haddad garante que será plural. “Sigo aberto ao diálogo e sem medo do contraditório.” Essa característica é ideal para o tempo e a temperatura do Brasil agitado em que vivemos. Entre colegas de trabalho, ele é visto como calmo, moderado e ponderador. Por esse perfil, até o tão temido mercado financeiro parece ter digerido bem sua chegada, dando ao professor um selo parecido com o de Antonio Palocci em 2003, no governo Lula I. E se as expectativas são altas, as demandas são maiores. Não será fácil dobrar um Congresso sedento por cargos e dinheiro, metade da população insatisfeita, uma economia reticente e apoiadores que esperam resultados rápidos.

Para evitar a mesma expectativa (e posterior frustração) que acometeu Paulo Guedes, o PT vai dividir responsabilidades. O plano é tomar o caminho inverso da gestão Bolsonaro e descentralizar o poder econômico. Em vez de um superministro, haverá ao menos quatro pessoas comandando a economia com agendas, pensamentos e planos diferentes. Além de Haddad, os cargos para o Ministério do Planejamento, da Indústria, Comércio Exterior e Serviços e da Casa Civil devem formar a cúpula que tomará as decisões de curto, médio e longo prazo. Para Haddad, esse caminho é frutífero e se assemelha ao que tinha em suas passagens no Ministério da Educação e na prefeitura de São Paulo.

Fernando Pieroni, diretor do Instituto Semeia e que foi diretor da São Paulo Negócios na capital paulista durante a gestão de Haddad, entende como característica principal do petista essa busca por decisões mais referendadas no coletivo. “Ele ouvia os técnicos e respeitava quem estava modelando os projetos. A prioridade era dada ao aval técnico, nunca ao ideológico.” Àquela época, inclusive, Haddad ganhou o apelido de tucano do PT, por mostrar um lado polido que era mais associado aos políticos do PSDB que passaram pela prefeitura. “Era enorme sua capacidade de articulação, negociação e diplomacia. Mas sempre com cabeça própria”, afirmou.

PreviousNext

Apesar de possuir um currículo bastante relevante durante sua passagem pelo Ministério da Educação e a criação de programas como o Prouni, talvez seja sua experiência no comando da cidade de São Paulo que guarde alguns dos mais interessantes números para o cargo que Haddad vai ocupar a partir de 1º de janeiro. Além de deixar em caixa para seu sucessor João Doria R$ 5,5 bilhões (um dado inédito, segundo o Tribunal de Contas do Município), ele elevou o grau de investimento medido pelo rating da cidade pela primeira vez em 20 anos, resultado de uma revisão fiscal que foi auditada e elogiada pelo FMI. Emilio Mota Reis, juiz aposentado do TCM, estava no fechamento das contas de Haddad. “Ele criou um sistema de gatilhos para alertar o TCM sobre gastos não previstos. Essa métrica até hoje é usada”, disse.

Outro pronto central da gestão de Haddad à frente de São Paulo foi a renegociação das dívidas do município, com a resolução de embates jurídicos que atravessavam décadas. O maior deles envolvia o governo federal (à época comandado por Dilma Rousseff) e o resultado foi uma redução pela metade do valor da parcela e diminuição de 30% no montante final da dívida. Cristina Helena Pinto de Mello, professora de Economia e diretora da Área de Sucesso Docente e Discente da ESPM, afirma também ter sido importante para Haddad outro embate. “Quando ele apoiou o ex-ministro da Fazenda Joaquim Levy, na tentativa de ajuste fiscal do governo de Dilma Rousseff”, disse. Sua não reeleição, em 2016, foi muito mais fruto do antipetismo em seu esplendor.

LEALDADE Bruno Carazza, professor da Fundação Dom Cabral (FDC) e autor do livro Dinheiro, Eleições e Poder: as Engrenagens do Sistema Político Brasileiro, disse que a decisão de Lula agora não difere muito da estratégia de 2003, quando escolheu Palocci. “Mostra que está preocupado em aprovar projetos importantes no Congresso.” Além de ter capacidade de reconhecimento muito além de seus colegas e companheiros de partido, o que é bastante incomum na política, sua escolha também tem muito a ver com a lealdade do ex-prefeito com Lula, e a capacidade de implementar medidas para coibir fraudes e mau uso de recursos públicos — os calcanhares de Aquiles que separaram Lula de Palocci, anos depois, na Lava Jato.

VEIA REFORMISTA Tido como o maior especialista em reforma tributária em atividade no Brasil, Bernard Appy embarca no Ministério da Fazenda. (Crédito:Reinaldo Canato )

Para dar conta de seus desafios — resumidos em promover crescimento econômico sólido —, ele usa um argumento que é música para o mercado e causa calafrios na esquerda: controle de gastos. Segundo Haddad, a PEC da Transição é importante para cumprir obrigações que o governo Bolsonaro não foi capaz de prever no Orçamento. Nas entrelinhas, diz ao mercado que não precisa desse recurso e que há um caminho entre a austeridade e o investimento necessário. Para José Niemeyer, coordenador de Relações Internacional do Ibmec-RJ, esse é sempre o dilema. “O desafio de gastar e, ao mesmo tempo, cuidar das contas públicas. No começo do governo terá uma visão muito mais social, mas logo será cobrado o crescimento econômico.”

Por esse motivo, mais do que nunca, os olhos estarão não tanto em suas falas e mais em suas atitudes. Como afirmou Bruno Monsanto, sócio e assessor de investimentos na RJ Investimentos, a nomeação de Haddad tem um caráter mais político que técnico, e isso aumenta a pressão nele. “O compromisso com o social é importante, mas vira demagogia se vier com irresponsabilidade fiscal”, disse. “Vide o governo Dilma.” Segundo Monsanto, sem apresentar soluções estruturadas, “a conta vai chegar em forma de inflação, juro neutro mais alto, volta a um modelo de subsídios, e aumento de impostos vindo a reboque.” Uma cartilha que Haddad e o próprio Lula conhecem muito bem. Vale lembrar que em agosto, o então candidato agora eleito afirmou que existem “três palavras mágicas para governar este País: credibilidade, previsibilidade e estabilidade” e que “ninguém pode ser pego de surpresa”. Nada mais correto. Caberá a Haddad cuidar dessa missão inescapável.

O mal de uma vez, o bem aos poucos

Eduardo Anizelli

Os grandes líderes do mundo têm em O Príncipe, de Nicolau Maquiavel, uma espécie de cartilha básica, e um dos ensinamentos é praticamente uma lição de marketing. É melhor entregar a parte ruim de uma vez, e ir parcelando a boa para sustentar uma imagem positiva. Os gerentes de marketing sabem bem que o cenário só fica melhor se a notícia não tão palatável for lançada no final do ano, no meio da Copa do Mundo, enquanto o País enfrenta uma polarização com ampla divulgação midiática. E talvez por isso Lula tenha “deixado escapar” que Aloízio Mercadante, seu coordenador de campanha e fiel escudeiro em todos os governos, irá assumir em janeiro a presidência do BNDES.

Dentro do próprio PT o assunto causou certo incômodo. Isso porque a indicação de Mercadante pareceu uma desculpa para que o Congresso derrubasse uma normativa que odiava, mas não alterava porque temia a opinião pública. Até por isso o ex-diretor do Banco Central, Tony Volpon, se disse surpreendido. “O Mercadante veio como surpresa, não tanto por estar no governo, mas sim no BNDES, muitos pensavam que ele teria um cargo político”, disse.

A notícia, claro, caiu como uma bomba no mercado, que esperava um nome com DNA liberal para comandar o banco público de fomento. Foi o que bastou para os papéis de estatais caíssem na bolsa e o dólar subisse. E, lembra do mal de uma vez? Se o mal era estressar o mercado, Lula o fez e testou o coração desse ente intangível. Na sequência, a Câmara, na figura de Arthur Lira, desengavetou uma matéria que tratava de revisar a Lei das Estatais, implementada por Michel Temer em 2017 para evitar indicações políticas e sem caráter técnico nas empresas públicas. O texto foi aprovado na calada da noite e é necessário para que Mercadante assuma o posto. Mas, mais do que isso, é o aval que o fisiologismo do Congresso tanto esperava para voltar a negociar cargos em escala e embarcar no Lula III.

Para o CIO da Suno Asset, Vitor Duarte, a mudança na Lei para facilitar a entrada de políticos em cargos estratégicos em empresas públicas é um erro crasso. “Não sei se as pessoas perceberam o tamanho da interferência política que será possível com isso. E o mercado vai reagir negativamente”, disse.

Em boa companhia

Para tentar desfazer o nó fiscal que o Brasil enfrenta, Haddad se cerca de nomes palatáveis ao mercado, ao mesmo tempo em que conversem com a proposta social do PT. Os dois primeiros convocados foram Gabriel Galípolo, ex-presidente do Banco Fator e que assumirá o cargo de secretário executivo. Ele é próximo do vice-presidente Geraldo Alckmin e foi conselheiro de Lula durante a campanha e provavelmente converteu alguns votos de liberais que estavam descontentes com a gestão Bolsonaro. Para o mercado, a ideia é que a presença de um ex-banqueiro, com uma visão mais pró-mercado, colabore para a construção de políticas econômicas alinhadas com o equilíbrio entre o fiscal e o social que Lula defendeu em campanha.

Quem também entra no time a peso de ouro é Bernard Appy, talvez o maior especialista em reforma tributária em atividade no Brasil. Autor de um dos textos de reforma que tramita no Congresso, Appy é a promessa de revisão tributária. Segundo Haddad ele atuará junto com o deputado Baleia Rossi e outros parlamentares para o avanço do texto, que será prioridade do governo já em 2023. Appy esteve no governo Lula entre 2003 e 2009, assumindo postos diversos ao longo do período.

E mesmo com todo o currículo, desafios e aliados que cercam Haddad talvez tenha sido em uma experiência, lá em 2002, em uma reunião com o recém-eleito Lula, que Haddad tenha alçado a vaga que ocuparia 20 anos depois. Nas palavras do próprio Haddad, em uma aula na PUC, o encontro foi assim: Antes da posse Lula se reuniu com intelectuais para discutir as primeiras medidas de seu governo. Eu intuía o que ele tinha em mente e levei um livro comigo. As falas foram variadas, todas muito pertinentes. Depois de ouvir, Lula tomou a palavra e disse que sua meta número um para o governo era acabar com a fome. Silêncio. Na segunda rodada chegou minha vez e eu li um pedaço de Minima Moralia, de Theodor Adorno. O momento em que ele discute qual seria o objetivo de uma sociedade emancipada. Livre. Então ele discorre sobre as respostas e como elas trazem pensamentos como “a realização das possibilidades humanas” ou “a riqueza da vida”. Adorno, não satisfeito, mostra que o caráter elevado de tais respostas era enganador e repulsivo. “A única resposta delicada seria a mais grosseira: que ninguém mais passe fome.” Na prática, se quiséssemos perseguir um objetivo, temos que ser simples e firmes: é preciso matar a fome no país. Lula riu da ironia. O mais ortodoxo dos acadêmicos até pode dizer que o interesse público contraria a responsabilidade fiscal, mas o retirante nordestino era bom de desafios e, sem nem imaginar, estava mais próximo de Adorno que os acadêmicos que conhecia.