16/08/2013 - 21:00
Uma cena na sala de entrevistas do Palácio do Itamaraty, na tarde da terça-feira 13, em Brasília, bem que poderia ser cômica, mas seu conteúdo não tem a menor graça. Estavam sentados, lado a lado, o ministro das Relações Exteriores, Antonio Patriota, e o secretário de Estado dos Estados Unidos, John Kerry. O primeiro disse com todas as letras o que pensava sobre a absurda espionagem americana no Brasil, revelada no bojo das denúncias feitas pelo ex-analista da Agência de Segurança Nacional americana Edward Snowden, atualmente asilado na Rússia. O segundo fez cara de paisagem, como se a crítica do governo anfitrião realmente não tivesse nada a ver com ele.
Descompasso: patriota (à esq.) e Kerry caminham no palácio do Itamaraty
Num discurso firme, Patriota disparou: “Precisamos descontinuar as práticas que atentam à soberania, às relações de confiança entre os Estados, e violam as liberdades individuais que nossos países tanto prezam”. Com um sistema de tradução simultânea nos ouvidos, Kerry, de 1,93 m de altura, não se fez de rogado, elogiou o Brasil e sua política ambiental, deixando clara a falta de vontade do governo de Barack Obama em dar explicações sobre as denúncias feitas por Snowden. Pior do que isso, saiu-se com a seguinte pérola ao ser questionado por jornalistas: “Estamos convencidos de que a nossa coleta de informação ajudou a proteger nossa nação de uma série de ameaças e também protegeu brasileiros.
John Kerry: “Estamos convencidos de que a nossa coleta de informação ajudou
a proteger nossa nação de uma série de ameaças e também protegeu brasileiros.
Vamos continuar a fazê-lo”
Vamos continuar a fazê-lo”. Tamanha cara de pau – quem disse que o monitoramento da comunicação entre pessoas e empresas no Brasil é necessário para eliminar ameaças terroristas nos Estados Unidos e por aqui? – não convence o governo brasileiro. Patriota deixou claro que a espionagem americana no País é grave. “A falta de informação (sobre o episódio) pode enfraquecer a confiança”, disse ele. A controvérsia em torno da espionagem deve ser tema de conversa entre a presidenta Dilma Rousseff e Obama em outubro, ainda que não conste na agenda oficial do encontro que ambos terão em Washington. Para o embaixador Rubens Barbosa, a vinda do secretário de Estado dos Estados Unidos tinha a intenção de atenuar a reação brasileira em relação ao monitoramento. “Mas o governo brasileiro pediu mais explicações”, diz Barbosa.
A ausência de uma retratação formal sobre a bisbilhotagem vai permanecer como um ruído para outras negociações e congelar a pauta econômica entre os países. Temas como a compra dos caças americanos, que interessam aos Estados Unidos, e a redução das barreiras para a exportação brasileira de suco de laranja e proteína animal provavelmente vão perder espaço durante a visita de Dilma (leia quadro abaixo). Em compensação, espera-se o anúncio do acordo de Global Entry, que vai facilitar a concessão de vistos entre os países, especialmente para executivos. “Tudo que não atrapalha o comércio é benéfico para o ambiente de negócios e, nesse caso, auxilia sobretudo o empresário americano interessado em fazer negócios com o Brasil”, diz Marcus Vinícius de Freitas, coordenador do curso de Relações Internacionais da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) de São Paulo.
Antonio Patriota: “Precisamos descontinuar as práticas que atentam
à soberania, às relações de confiança entre os Estados, e violam
as liberdades individuais que nossos países tanto prezam”
Segundo ele, o País deveria aproveitar o encontro para estreitar as relações comerciais com os Estados Unidos, que andaram de lado no ano passado. A soma das importações e exportações entre os países fechou em US$ 59 bilhões no ano passado, valor levemente menor que os US$ 59,7 bilhões de 2011. “Retomar o crescimento do comércio seria uma forma de se beneficiar dos acordos que os americanos estão costurando com a Ásia e a Europa.” Essa seria, ainda, uma forma de o Brasil defender sua relevância regional, num momento em que ganha força a Aliança do Pacífico, bloco comercial formado por Chile, Colômbia, México, Peru e Costa Rica. Para que as trocas avancem, no entanto, será preciso antes superar o assunto da espionagem americana. Kerry, entretanto, fez muito pouco para que isso aconteça.