24/06/2016 - 20:00
O dia chuvoso e nublado, típico do início do verão em Londres, aumentou a expectativa e a tensão sobre a quinta-feira, 23 de junho. A histórica data do Brexit, referendo sobre a permanência ou a saída do Reino Unido (formado por Inglaterra, Escócia, País de Gales e Irlanda do Norte) da União Europeia (UE), teve recorde de comparecimento às urnas: foram 46,5 milhões de pessoas, apesar das 15 horas ininterruptas de chuva. Contrariando pesquisas de opinião e ignorando uma campanha extremamente agressiva e xenófoba, que culminou com a morte da parlamentar Jo Cox, esfaqueada por um extremista radical, mais de 17,4 milhões de britânicos optaram pela saída do estado de um dos mais poderosos blocos de integração mundial. Os 51,9% favoráveis à separação expuseram a divisão interna: 64% dos jovens de até 24 anos votaram pela permanência e 58% daqueles com mais de 65 anos preferiram a independência. Os mais velhosos, saudosos de um passado que nunca voltará, atrapalharam o futuro de toda uma juventude que valoriza o mundo sem fronteiras. A partir de agora, uma nova ordem retrógrada passa a ser desenhada, no pior choque no Velho Continente desde o término simbólico da Guerra Fria, selado pela queda do mundo de Berlim, em 1989. As repercussões do referendo serão sentidas não somente no Reino Unido ou entre os outros 27 países do bloco comum, mas ao redor do mundo, inclusive no Brasil. O risco é gravíssimo: uma freada no processo de globalização.
O impacto das urnas foi imediato. Enquanto as bolsas derretiam mundo afora, caía o governo do primeiro-ministro David Cameron, que renunciou. A libra esterlina atingiu o menor patamar desde o grande ataque especulativo de 1992, quando saiu do sistema cambial europeu, e as principais agências de classificação de risco fizeram uma revisão imediata da nota do Reino Unido (leia mais sobre a reação dos mercados na pág. 36). A política global também foi abalada. Os principais líderes mundiais manifestaram seu descontentamento. “É um golpe contra a Europa e o processo de unificação do continente”, disse a abatida chanceler alemã Angela Merkel, que convidou o presidente francês François Hollande, o primeiro-ministro italiano Matteo Renzi e o presidente do Conselho Europeu Donald Tusk para uma reunião em Berlim na segunda-feira, 27. A agência oficial russa divulgou uma nota em que o presidente Vladimir Putin critica o referendo. “Seus resultados são uma atitude presumida e superficial das autoridades britânicas em relação a assuntos cruciais para o país e o conjunto da Europa.” Nos Estados Unidos, o presidente Barack Obama disse respeitar a decisão dos britânicos.
O resultado das urnas parece controverso. O sistema de inteligência do Google mostra que, poucas horas depois do fim do referendo, houve uma frenética busca pelo significado de União Europeia. A pergunta “o que acontece se nós deixarmos a UE?” mais que triplicou. Muitos parecem ter votado sem saber o real peso da decisão. Essa saída poderá, inclusive, culminar em divisões no próprio Reino Unido. A Escócia pode realizar outro referendo de separação, já que 62% dos seus eleitores optaram por ficar na União Europeia. A Irlanda do Norte, que contou com a força política da UE para apaziguar os ânimos entre católicos e protestantes, pode seguir pelo mesmo caminho. “Por ora, será difícil compreender a questão de identidade cultural dos países do Reino Unido e se esse sentimento vai mudar, porque uma grande parte da sociedade britânica sempre se sentirá britânica acima de tudo”, diz Walter Bilas, especialista em direito europeu e professor da University of Law, da Inglaterra.
Uma das figuras centrais da campanha pela permanência do Reino Unido no bloco europeu, o primeiro-ministro, David Cameron, do Partido Conservador, disse adeus ao seu mandato, que havia sido renovado até 2019. Num discurso memorável em frente ao número 10 da Downing Street, residência oficial e escritório do premier, Cameron afirmou ser incapaz de conduzir o Estado. Seu substituto será decidido até outubro – ainda não se sabe se por nova eleição ou se um outro membro do Partido Conservador assumirá a cadeira. “O povo britânico fez uma clara decisão em ser uma parte separada. E, por isso, merece uma nova liderança para levá-lo nessa direção”, disse Cameron.
Nos próximos dias, ele deve acionar a cláusula 50 do Tratado de Lisboa, que dará início às negociações de desligamento da UE (leia quadro). O bloco afirmou que quer apressar essa saída o mais rapidamente possível. As consequências para a economia do Reino Unido, que exporta quase metade de seus produtos para os países europeus unidos, ainda são incertas. Mas ninguém duvida que a integração comercial cobrará um alto preço por essa decisão. Terceiro maior integrante do bloco econômico, o Reino Unido é responsável por 15% do Produto Interno Bruto (PIB) da UE. Estudos preliminares prevêem o encolhimento do PIB entre 0,1% e 3,9% no Reino Unido, em 2017, e um corte de até 22% nos investimentos nos próximos três anos, numa redução de cerca de 21,1 bilhões de libras (R$ 105 bilhões). A China, por exemplo, dona da simbólica London Táxi e de participações importantes nos aeroportos de Manchester e Heathrow, fará uma revisão de seus investimentos com o fim dos benefícios comerciais do bloco. “No longo prazo, dependerá muito de como o país irá negociar com a União Europeia”, diz Ulrik Bie, economista-chefe do Institute of International Finance (IIF), de Washington, em entrevista à DINHEIRO. “No curto prazo, a economia britânica será atingida pela incerteza, o que pode acarretar em recessão, já que as empresas vão reter investimentos e contratações.”
Uma análise enviada com exclusividade à DINHEIRO pela multinacional francesa Coface, seguradora de crédito especialista em riscos globais, mostra que os impactos previstos são a queda no setor de construção, que sofrerá com a alta dos insumos importados, e um cenário negativo para setores competitivos da economia britânica, como o farmacêutico e o automotivo, que terão taxas aduaneiras mais elevadas. Se isso ocorrer, a tendência é que as regras para importações também sejam ajustadas para favorecer o mercado interno. Os reflexos de medidas como essa podem levar à retração de mais de 10% das exportações de veículos. Detalhe: em 2015, 80% da produção de automóveis do Reino Unido foi exportada. A Nissan anunciou que estuda transferir sua fábrica britânica para um outro país membro do bloco. O Brexit – sigla das palavras british e exit – enfraquece os negócios externos de Holanda, Bélgica, Dinamarca e Suécia, que são extremamente dependentes dos ingleses. “A tendência é que a União Europeia endureça as regras comerciais com o Reino Unido, para evitar um efeito manada, que será altamente prejudicial ao bloco”, diz Rubens Barbosa, ex-embaixador do Brasil na Inglaterra.
Globalização em xeque O Brexit reviveu a discussão sobre os modelos de cooperação mundial, o que coloca em xeque os avanços da globalização, muito notórios no século passado. A decisão do Reino Unido pode servir de munição para separatistas de outros países como Itália, Holanda, Dinamarca, Suécia e França, onde a extrema direita tem se fortalecido. A presidente da Frente Nacional Francesa, Marine Le Pen, defendeu a realização de referendos populares em cada um dos países membros para a permanência na UE. “O que aconteceu com o Brexit é um exemplo muito claro do que estamos vivendo”, diz Marcos Troyjo, diplomata brasileiro e diretor do BRICLab da Universidade Columbia. “Pode ser uma fase curta, mas é de desglobalização.”
O principal fator que alimenta o ressurgimento da extrema direita é a xenofobia, que aumentou com o desemprego e a grave crise migratória que assola o continente. Relatório da Organização das Nações Unidas (ONU) mostra que 65 milhões de pessoas estão em situação de fuga (o equivalente à população britânica). No Reino Unido, o levante de barreiras aos imigrantes é defendido por quase 80% dos britânicos. Essa posição ganhou força com o aumento da quantidade de estrangeiros vivendo na ilha: entre 1993 e 2014, houve uma expansão de 3,8 milhões para 8,3 milhões. Um retrocesso nessa questão deve abalar o mercado de trabalho britânico. O Banco da Inglaterra calcula uma eliminação de até três milhões de empregos em dois anos. O banco Morgan Stanley afirmou que fechará duas mil posições. As questões trabalhistas estão no topo das transformações que ocorrem nas relações de cooperação comercial mundial, que devem se parecer cada vez mais com a Parceria Transpacífico (TPP, na sigla em inglês). “A expectativa é que os processos de integração sejam menos ambiciosos”, diz Troyjo (leia entrevista ao lado). “Não há mais clima político e econômico para se fazer isso.”
No século XX, os blocos de integração comercial e política nasceram para tentar estabelecer a paz em períodos conturbados e aproximar as nações, não só comercialmente, mas culturalmente. Foram os casos da própria União Europeia, que surgiu com o final da segunda Guerra Mundial, e da Asean (Associação das Nações do Sudeste Asiático), criada em 1967 para garantir o desenvolvimento e a estabilidade política da região. No século XXI, os acordos regionais poderão ser cada vez mais incomuns e menos profundos. Além das alterações da ordem global provocadas pela grave crise financeira de 2008 e 2009, que levou as potências econômicas como Estados Unidos e países europeus a uma profunda recessão, houve o desenvolvimento de modelos comerciais multilaterais. Isso levou a mudanças nos processos de cooperação, em paralelo às medidas extremistas contra políticas migratórias. Tensões provocadas por guerras em países do Oriente Médio, como a da Síria, e o avanço de grupos terroristas como o Estado Islâmico do Iraque e do Levante (Isis, na sigla em inglês), responsável pelos recentes ataques em Paris e em Bruxelas, estão entre os principais agravantes desse processo. “Esse foi um momento crucial, pois países se fecharam para desenvolver políticas comerciais próprias”, diz Marcus Vinícius Freitas, professor de direito e relações internacionais da FAAP. “Porém, nada comparado ao ocorrido entre as duas grandes guerras mundiais.”
Caminho da América Se a tendência com o Brexit é de um Reino Unido mais alinhado com os EUA, o impacto imediato é na eleição americana, que será realizada em novembro. Por acentuar o discurso de rígidas políticas migratórias, o candidato republicano Donald Trump pegou carona na decisão britânica. Em visita à Escócia, ele afirmou que existem semelhanças entre sua campanha e o Brexit. “Vejo um paralelo real, pois as pessoas querem recuperar seu país e a independência”, disse Trump. Sua adversária, a candidata democrata Hillary Clinton, optou por um tom mais ponderado. “Nossa primeira tarefa é garantir que a incerteza econômica criada por estes eventos não afete famílias trabalhadoras nos EUA”, disse ela, em comunicado.
Para o Brasil, as consequências do processo da desglobalização podem vir direta e indiretamente. Com o Brexit, o País deve sofrer com as mudanças da política migratória que será reformulada pelo Reino Unido, o que afetará os brasileiros que moram na região. O comércio também poderá ser afetado. David Cameron era um dos poucos fiadores das negociações para o acordo entre o Mercosul e a União Europeia. Há mais de uma década em discussão, o tratado teve poucos avanços pela resistência de países como a França, que alegam que o acordo enfraquecerá a agricultura local. “Para a negociação entre os blocos, o Reino Unido era um ponto favorável a nós”, diz o embaixador Rubens Barbosa. “Temo que o acordo sofra mais atrasos.” O Itamaraty, em nota oficial, disse que insistirá nessa política. “Continuaremos engajados, com prioridade inalterada, na negociação de um acordo de associação entre o Mercosul e a União Europeia”, afirmou.
A decisão do referendo foi recebida com surpresa e cautela pelas empresas britânicas que operam no Brasil. A montadora Jaguar Land Rover, que inaugurou no País sua primeira fábrica este ano, informou que ainda não sabe qual será o impacto nos negócios e que “analisará todos os desdobramentos que surjam a partir da decisão.” O laboratório farmacêutico GlaxoSmithKline (GSK) avalia que, apesar da incerteza gerada, não se pode antecipar, no momento, “um impacto material adverso sobre os negócios, os resultados do grupo ou posição financeira.” A saída dos britânicos, de todo modo, levará pelo menos dois anos para se concretizar. Desde já, o Reino Unido ensinou ao mundo o significado da desunião.
Novo mundo
Em referendo histórico, os britânicos optaram por deixar a União Europeia. Crises geopolíticas e impasses no modelo multilateral devem mexer com os atuais blocos econômicos. Conheça os principais acordos de cooperação mundial:
Aliança do Pacífico
Bloco comercial latino-americano composto por Chile, Colômbia, México e Peru. Criado em 2012, o grupo busca a liberdade comercial e a integração econômica, com negociação conjunta de reduções de tarifas de exportação
Nafta
Composto por México, Estados Unidos e Canadá, foi criado em 1994 para manter políticas comuns em padrões, leis financeiras, questões alfandegárias e acesso aos mercados dos países membros.
Mercosul
Apesar de seu objetivo principal ser a integração dos Estados por meio da livre circulação de bens e serviços, nunca se desenvolveu economicamente. Criado oficialmente em 1991, é formado por Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai e, recentemente, Venezuela.
União Europeia
Bloco político-econômico iniciado após a Segunda-Guerra Mundial, e oficialmente estabelecido como mercado único em 1993. Com 28 estados-membros, o euro, a moeda comum, é adotado por apenas 19.
Asean
A Associação das Nações do Sudeste Asiático foi criada em 1967 para garantir o desenvolvimento e a estabilidade política da região do sudeste asiático. Formado atualmente por 10 países, entre eles Camboja, Tailândia e Vietnã, o bloco quer acelerar o crescimento econômico, o progresso social e o desenvolvimento cultural.
União Africana
Criada em 2002, tem atuado na mediação e prevenção de conflitos. Sua vertente econômica privilegia projetos de cooperação internacional.
BRICS
Embora não seja formalmente um bloco econômico, Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul procuram formar uma aliança a altura de seu crescente poder econômico e influência geopolítica. As principais vertentes da cúpula são: coordenação em reuniões e em organismos internacionais e a construção de uma agenda de cooperação multissetorial entre os membros.
O dia depois de amanhã
Desligamento do Reino Unido da União Europeia após a ressaca:
– O primeiro-ministro David Cameron renunciou. Um novo premiê assume até outubro
– Processo de saída precisa ser formalizado com o pedido da cláusula 50 do Tratado de Lisboa, que desde 2009 funciona como uma Constituição Europeia
– Num prazo de até dois anos, o desligamento é negociado com membros do bloco, que podem vetar novos acordos com o Reino Unido
– O Parlamento britânico terá a complexa tarefa de rever 80 mil páginas de acordos com a União Europeia e modificar a legislação interna, para revogar os atos que dão primazia às leis europeias
– Resultado pode influenciar uma onda separatista em outros países, como França e Itália
– Escócia e Irlanda do Norte, que votaram pela permanência no bloco comum, podem fazer um plebiscito pela independência do Reino Unido
Confira:
“O Brasil sairá da caverna, mas encontrará um mundo muito diferente”