No próximo dia 25 de janeiro, a Marfrig Global Foods vai tirar um importante peso de seu caixa. A companhia deixará de pagar juros anuais de R$ 350 milhões ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), como forma de remuneração às debêntures emitidas em 2010 para a compra da empresa americana Keystone. Nessa mesma data, a estrutura de capital da companhia terá de ser alterada. O banco de fomento fará a conversão integral desses títulos em ações e passará a deter a maior fatia da empresa de proteínas.

Atualmente, a MMS Participações, empresa do fundador Marcos Molina, possui 36% dos papéis e o BNDES, 19,6%. Após a conclusão dessa operação, haverá uma inversão a favor do banco público (33% a 31%). Um novo acordo de acionistas, com prazo de cinco anos, será assinado, mas a única alteração prevista é um novo assento no conselho de administração para a instituição financeira. “Nos últimos três anos, tínhamos uma obrigação grande com o BNDES.

Mesmo assim, conseguimos ter fluxo de caixa positivo”, diz Marcos Molina, fundador e presidente do conselho de administração (leia entrevista no link ao final da reportagem). O vice-presidente financeiro Eduardo Miron explica o que vem pela frente. “Nada muda dentro da empresa; é a finalização de uma operação. A lógica é que ela foi feita para não afetar a alavancagem. O que o BNDES vai fazer desse investimento é um assunto deles. Não especulamos em relação a isso.” Especulações sobre o controle da Marfrig não faltaram nas últimas semanas.

Marcos Molina deu início a grandes compras de ações da empresa na BM&FBovespa, o que indica que ele continuará como acionista majoritário quando os documentos e o novo acordo de acionistas forem assinados. Em outubro, a empresa foi obrigada a emitir um comunicado informando que seu controlador havia adquirido um total aproximado de 5,15% de seus papéis. Outra movimentação recente deve estar ligada a Molina.

Na segunda-feira 12, o fundo de investimento norueguês Skagen informou ter vendido uma quantidade relevante de ações e reduzido sua participação de 5,3% para 4,8%. Embora o comprador não tenha sido divulgado, o profissional de uma corretora, que pediu para não ser identificado, diz que Molina tem sido bastante agressivo em suas aquisições. “Ele tem aproveitado o preço baixo da ação para aumentar a sua participação e continuar como controlador. O mais importante é que ele está fazendo isso com recursos próprios e não com o caixa da empresa.”

A maior apreensão do mercado financeiro com relação à Marfrig era o risco de uma brusca mudança de rota. As debêntures conversíveis em ações são fruto de uma renegociação com o BNDES, em 2013, quando a empresa estava com sérias dificuldades financeiras. O banco de fomento aceitou a nova proposta, em troca do pagamento de juros e da venda de ativos. O objetivo era reduzir a alavancagem da Marfrig – a dívida líquida chegou a bater os R$ 9,2 bilhões, o que significava 4,3 vezes a sua geração de caixa.

Na metade deste ano, surgiu a informação (que posteriormente não foi confirmada) de que a companhia havia oferecido R$ 1,2 bilhão ao BNDES, um importante desconto sobre os R$ 2,1 bilhões de valor de face dos papéis. O certo é que todos esses valores estão sendo colocados em xeque. Hoje, se o banco de fomento vendesse todas as suas ações da Marfrig, não conseguiria mais do que R$ 600 milhões. A desvalorização é própria de investimentos de risco.

Em tempos de Lava Jato, em que as operações entre o BNDES e as empresas estão sendo analisadas com lupa, seria difícil alguém bancar uma operação que desse prejuízo ao banco. Se investigações abrem uma janela de temor, o mercado financeiro recebeu com alívio a decisão da Marfrig deixar o banco de fomento converter a dívida em ações. Se levasse adiante o plano de recompra, a companhia usaria parte do seu caixa para realizar o resgate dos títulos, o que pressionaria novamente o seu endividamento.

A decisão custaria a recuperação da confiança dos investidores, que viram a alavancagem recuar para 3,4 vezes a geração de caixa, no terceiro trimestre deste ano. Até 2018, a estratégia é reduzir esse indicador para 2,5. “Continua sendo bastante desafiador, mas a desalavancagem é um dos pilares e tem a ver com o que tem sido feito nesses últimos três anos”, afirma Miron. “A disciplina financeira, para nós, é o foco número um.” Luciana Carvalho, analista de alimentos e bebidas do BB Investimentos, projeta esse indicador em 2,8 vezes daqui a dois anos.

Nesses últimos três anos, Miron cuidou da gestão dos passivos e conseguiu um importante alongamento da dívida. Com acesso ao mercado internacional, ele aumentou o prazo médio das principais obrigações de pagamento de 38 meses para 48 meses. “A Marfrig não duraria cinco anos sem essa reengenharia”, diz um concorrente. A companhia, que chegou a ser a segunda maior fabricante de produtos a base de carne do Brasil, estava em reestruturação para se reinventar.

Não era algo simples para quem, até 2013, era visto como a grande consolidadora do setor de proteínas no País, ao lado da JBS, da família Batista. Entre 2007 e 2012, Molina deu sequência a uma impressionante rodada de aquisições, uma das mais agressivas entre empresas brasileiras, ao investir cerca de R$ 7,5 bilhões na compra de 42 negócios, sendo 16 deles no exterior. Ele chegou a ter mais de 150 fábricas, em 22 países. Atualmente, são 47 unidades de produção e centros de distribuição, em 12 países.

“A história do Molina é fundamentalmente ligada à pecuária de corte”, diz Alcides Torres, sócio da Scot Consultoria. “A empresa precisou tirar de seu portfólio tudo que não era ligado à produção de carne.” Um dos símbolos desse período de bonança foi a aquisição da marca Seara, por US$ 900 milhões, da americana Cargill, em 2009. A negociação acontecia ao mesmo tempo em que a Sadia, que perdeu muito dinheiro com operações de derivativos, em 2008, realizava uma fusão com a Perdigão.

Automaticamente, a Seara se transformava na segunda maior empresa do mercado. Para Molina, era o primeiro passo para a sonhada internacionalização da Marfrig. Mas a marca que elevou a empresa a patamares globais teve de ser a primeira a ser vendida. Quatro anos após sua compra, a concorrente JBS pagou R$ 5,8 bilhões para ficar com o negócio. Não foi uma decisão fácil para Molina. O empresário é conhecido por ser centralizador. Nesse caso, por exemplo, queria vender a Seara, mas sem perder o controle.

Na época, um dos interessados definiu bem o estilo de Molina. “Ele quer vender um relógio, mas não quer tirar do pulso. Se quiser saber as horas, precisa perguntar para ele”, disse o concorrente. Molina, por sua vez, analisa o momento em que a companhia foi comprada pela Marfrig. “Fizemos a aquisição da Seara quando o Cristo Redentor estava voando, com expectativas de crescimento de mais de 10% no consumo de alimentos processados e industrializados”, afirma Molina, numa referência à famosa capa da revista The Economist. “Mas ocorreu o inverso. Tudo é uma questão de timing.”

A venda indicava que a Marfrig passaria a olhar apenas para si. A companhia adotava um estilo mais conservador. Um plano de cinco anos foi apresentado aos investidores com as novas estratégias, até 2018. Chamado de “focar para ganhar”, era um resumo do atoleiro em que havia se metido. A tentativa era simplificar a empresa, que foi repartida em divisão Keystone, produtora global de alimentos processados de origem animal, e divisão Beef, a responsável pela produção de carne bovina.

Em paralelo a isso, houve uma melhoria na fragilizada governança corporativa da Marfrig. Até aquele momento, Molina ocupava as cadeiras de presidente executivo e do conselho de administração. Foi realizada uma alteração, que alinhava a empresa às novas regras do mercado de capitais. O executivo Sérgio Rial assumiu a presidência, enquanto o fundador e controlador manteve apenas o comando do conselho. Rial ficou apenas um ano no cargo, antes de assumir o Banco Santander, em janeiro de 2015.

“A estratégia de desenvolvimento da empresa foi aos mínimos detalhes porque era o caminho que ela deveria trilhar”, diz o uruguaio Martín Secco, o CEO que assumiu a Marfrig. “Deixamos uma companhia muito mais simples para o mercado, com duas divisões bem diferenciadas.” A chave para entender esse movimento é a americana Keystone. A empresa de processamento de proteínas se transformou no mais importante negócio da Marfrig. Em 2013, ela representava apenas 15% das receitas.

Era menor que a Moy Park, a britânica comprada em 2009, que atuava no mesmo segmento e contribuía com 22%. Os 69% vinham da venda de carnes, principalmente no mercado doméstico. Agora, a Keystone significa metade do faturamento da Marfrig. Nos últimos três anos, a companhia aumentou a venda para grandes redes de fast food. Além de ser a principal fornecedora de hambúrgueres bovino e de peixe para o McDonald’s, uma parceria de 40 anos, ela tem como clientes Wendy’s, Subway, Pizza Hut, Burger King entre outras marcas globais.

A venda de produtos processados nos nove primeiros meses deste ano atingiu US$ 754 milhões, superando todo o resultado do ano passado. “A Keystone foi o negócio que deu muita estabilidade para a empresa nos últimos anos”, afirma Secco. “Por isso, no plano estratégico para os próximos cinco anos, vamos continuar crescendo com a Keystone. A Ásia tem oportunidades claras , onde vamos investir em novas linhas de negócio.” O principal desafio para 2017 será conduzir de forma ordenada essa expansão.

A Marfrig vai direcionar parte dos seus esforços para o mercado asiático, que é um dos únicos onde as intenções de consumo de alimentos não param de crescer. “O futuro está na Ásia e a China é onde tem mais espaço para crescer”, diz Cesar Alves, analista de proteína da MB Agro. “A estratégia é acertada.” A dúvida é como será feito esse investimento. Uma alternativa seria realizar a abertura de capital da divisão Keystone na Bolsa de Valores de Nova York, algo que a JBS cogita fazer com sua operação internacional.

Gabriel Lima, analista de alimentos e bebidas do Bradesco BBI, estima um potencial de valorização de aproximadamente 30% nas ações da Marfrig com o IPO da Keystone. Até o ano passado, era certo que esse caminho seria utilizado com a Moy Park. Mas, em setembro, a JBS pagou US$ 1,2 bilhão para ficar com a empresa. “A venda da Moy Park era uma movimentação que não estava nos planos”, afirma o CEO. “Mas a foi a melhor opção porque achamos que ia reforçar muito mais os nossos planos. Hoje, olhando para trás, ela foi acertada.”

Parte do sucesso dessa estratégia da Marfrig é creditada ao bom-senso das decisões tomadas por Martín Secco. Em 2006, ele vendeu a empresa familiar Tacuarembó, criada pelos seus pais nos anos 1960, para a Marfrig. Na assinatura do contrato, Molina condicionou a compra à permanência dele no negócio. Detalhe: durante os três meses de negociação, eles não haviam mencionado nada sobre isso. Inicialmente, o fundador da Marfrig sugeriu ficarem um ano juntos. Secco aceitou e nunca mais voltaram ao tema.

Quando assumiu o cargo de CEO, há dois anos, ficou claro que ele e Molina tinham características semelhantes: ambos dividem a paixão pela pecuária e por entregar produtos de qualidade ao consumidor. Agora, Secco está determinado a consolidar o mercado de produtos diferenciados, como a linha Xingu, que valoriza uma região brasileira, ou a Nelore natural, desenvolvida com alguns produtores paulistas. “Na divisão Beef, ainda queremos continuar com essa etapa de consolidação do negócio”, afirma ele. “Não nos interessa sermos os maiores, mas sim os melhores, com um negócio de boa perfomance e que tenhamos mais visibilidade.” Tudo isso, claro, sob o olhar atento de Molina.

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