03/06/2016 - 20:00
Confesso que sempre tive dificuldades para assimilar alguns radicalismos da filosofia esquerdista. Não as grandes bandeiras, como o Estado paizão, mas nos detalhes mais singelos, como boicotar o lanche do McDonald’s em protesto à fome na África ou evitar as cafeterias do Starbucks para confrontar o imperialismo americano – práticas comuns entre os mais jovens. Também não enxergava muito sentido nas diretrizes neoliberais, do tipo “quanto menor o Estado, melhor.” Nas últimas semanas, no entanto, tenho compartilhado a mesma dificuldade de mortadelas e coxinhas na tentativa de compreender o estilo Michel Temer de fazer política.
É algo mais complexo até do que o uso da mesóclise, da ênclise e da próclise na língua portuguesa, frequentemente conjugado pelo presidente desde seu discurso de posse. Afinal, uma semana depois de receber sinal verde do Congresso para fechar suas contas deste ano com um abismo de R$ 170,5 bilhões de déficit e anunciar uma forte redução dos gastos, Temer aplaudiu a decisão da Câmara dos Deputados de aprovar um pacotaço de reajustes salariais e benefícios para servidores que custará, até 2019, R$ 58 bilhões aos já vazios cofres públicos. A aparente contradição de Temer, sob a ótica das finanças, é uma grande catástrofe.
Sem dinheiro para pagar até suas contas mais básicas, o governo estaria concedendo reajuste salarial aos funcionários utilizando o cheque especial. No pacote das estranhezas estão ainda a criação de 11,5 mil empregos públicos, semanas depois de anunciar a extinção de 4 mil cargos comissionados. O procurador-geral da República Rodrigo Janot e o presidente do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski, terão seus salários reajustados de R$ 33,7 mil por mês para R$ 39,3 mil, nada de mais se não ocorresse na mesma semana que o IBGE constatou a maior taxa de desemprego desde 2002, com mais de 11,4 milhões de desempregados.
Calma, que tem mais. No mesmo mutirão de aprovações, na madrugada da quinta-feira 2, os deputados endossaram a emenda constitucional de desvinculação de receitas da União. O que isso significa? Que o governo tem carta branca para gastar como quiser 30% das verbas que a Constituição obriga a investir em áreas específicas, como saúde, educação e segurança. Cadê a previsibilidade e a disciplina fiscal?
A única provável razão para tal contrassenso é a política. A aprovação de parte das chamadas “pautas-bomba” no Congresso evidencia em Temer uma força que havia desaparecido em Dilma Rousseff, em seus últimos dois anos. Ao conceder um reajuste salarial com dinheiro que não existe, Temer demonstra que está confiante que os recursos, de alguma forma, virão. Caso contrário, estaria cometendo os mesmos crimes de sua antecessora.
Além disso, ele faz um afago a uma classe de maioria petista, mas que aguardava há anos um aumento salarial que não vinha, e solidifica a base política no Congresso, essencial para aprovar as medidas de ajuste. Esses argumentos são apenas suposições de quem não quer ver o País caminhando para o precipício. Não é possível que Temer e sua equipe de notáveis continuem praticando malabarismos irresponsáveis com as contas públicas – à la Dilma –, agravando a recessão e alimentando o monstro do desemprego. Não é possível.