A invasão determinada pelo presidente russo Vladimir Putin à Ucrânia, na última semana de fevereiro, não só despertou o temor de uma Terceira Guerra Mundial como acendeu o sinal de alerta no agronegócio brasileiro. Maior produtor global de fertilizantes, a Rússia é também o principal fornecedor do insumo para o Brasil. As sanções contra Moscou, que podem afetar a produtividade do campo brasileiro, mostraram que a tal independência global das lavouras brasileiras é uma narrativa contada pela metade. Em entrevista à DINHEIRO, o presidente da Associação Brasileira da Indústria Química (Abiquim), Ciro Marino, diz que, por enquanto, o agronegócio depende das indústrias químicas de fora.

Há motivos para a economia brasileira se preocupar tanto com a guerra?
Há, sim. A indústria química brasileira foi a que mais perdeu para a desindustrialização nos últimos 35 anos. Com a globalização que levou parte da indústria do Ocidente para o Oriente, perdemos a cadeia de produção. Ou seja, perdemos parte da indústria de base de origem nacional. No curto prazo, nossa indústria não consegue suprir o que pode deixar de ser importado.

Por que o setor químico enfatiza tanto a sua força e importância, mas demonstra receio com as crises que vêm de fora?
Porque, mesmo com todas as adversidades, temos conseguido nos segurar na sexta posição mundial de maior economia do mundo. Já tivemos perto da quarta posição. Depois caímos para quinta e perdemos para a Coreia do Sul. Mais importante do que isso: conseguimos nos manter na terceira posição do PIB industrial do Brasil. E somos o primeiro setor industrial em arrecadação de impostos para o governo. Se somos o terceiro no PIB e o primeiro em arrecadação, alguma coisa não está correta no balanço tributário brasileiro. Hoje somos tributados, dependendo do estado, entre 40% e 45%, enquanto nossos concorrentes lá fora são tributados entre 20% e 25%.

Além da questão tributária, que não é um desafio apenas do setor químico, quais são os maiores entraves?
Outro problema é a questão dos insumos. O gás natural, que é uma matéria-prima superimportante para nós, não como fonte energética, mas como molécula, pagamos no Brasil 300% mais do que se paga nos Estados Unidos, por exemplo. Já na energia elétrica, outra importante fonte de processos intensivos, como a fabricação de cloro ou de PVC, pagamos 400% mais.

Então a indústria química depende de subsídios para sobreviver?
Precisamos de condições de igualdade com o restante do mundo. Todos os países da OCDE com os quais competimos, incluindo Alemanha, Estados Unidos, Inglaterra, Japão e muitos outros, têm regimes especiais para dar suporte às suas indústrias químicas. Em consequência disso, há grandes projetos de investimento. Quando se coloca a indústria química brasileira em perspectiva internacional, ficamos para trás.

Mas o Brasil já tem algumas propostas de incentivo ao setor…
O Brasil é muito tímido nesses regimes especiais. Discutimos recentemente o Regime Especial da Indústria Química, o Reiq, com o governo brasileiro olhando apenas para dentro do País. Mas nossa indústria não é local. É global. Quando se olha lá fora, todos os países de uma forma ou de outra incentivam sua indústria química. Assim como uma árvore, quando se cuida bem da raiz, todo o restante se desenvolve muito bem.

Então, as empresas químicas precisam de incentivos para serem competitivas?
Não se trata apenas de incentivos. É uma questão de olhar para os fatores exógenos, os fatores externos que, na concorrência, tiram a competitividade do Brasil. Todos os fatores endógenos, aqueles que enxergamos do portão para dentro, a indústria química é muito competitiva. Nossa indústria está em posição de competir tanto em produtos quanto em tecnologia. O cenário de pandemia e de guerra deu luz às nossas fraquezas. No cenário de guerra, a questão dos fertilizantes foi a primeira fraqueza que apareceu. Isso porque a Rússia é o maior exportador de fertilizantes do mundo e o principal fornecedor do Brasil. Logicamente, temos outros possíveis fornecedores.

A dependência do agronegócio de importação de fertilizantes é um retrato da incompetência do agro e do setor químico nos últimos anos ou não havia possibilidade de produção nacional?
Vamos lá. A palavra que explica isso é competitivida0de. É o que resume tudo. Quando falamos de fertilizantes, estamos nos referindo ao nitrogênio, fósforo e potássio. Esses dois últimos estão na cadeia de mineração. O Brasil tem fósforo e potássio. Só que para realizar essa exploração é necessário ter energia. Muita eletricidade ou gás natural. E o Brasil não tem nenhuma competitividade em energia. Sempre foi mais viável importar do que minerar, produzir e desenvolver a indústria de fertilizantes internamente. Já com relação aos nitrogenados, a matéria-prima é o gás natural, que é transformado em amônia e depois em ureia e em uma família de outros nitrogenados. Nisso, o Brasil não só importa os nitrogenados acabados como traz de fora também os intermediários. E tudo vem da Rússia, onde há gás natural de sobra e energia barata.

A indústria sumiu ou nunca existiu?
Quatro ou cinco anos atrás, a Petrobras tinha suas Fafens, as Fábricas de Fertilizantes Nitrogenados, em Sergipe, na Bahia, no Paraná e no Mato Grosso do Sul, que eram totalmente subsidiadas. Dentro das regras de ‘transfer pricing’, elas não poderiam trazer o gás e converter pelo preço de compra, mas converter para o preço da Petrobras, que é totalmente fora do preço internacional. Dessa forma, a própria Petrobras teve de fechar suas unidades. No ano passado, a Unigel resolveu arrendar duas dessas plantas no Nordeste e reiniciar a produção. Numa situação pontual, de guerra, em que houve uma alta muito forte, foi possível ter rentabilidade. Fora de um cenário de guerra e sem uma política de governo que incentive o setor de fertilizantes, fica muito difícil competir e sustentar a produção nacional de um produto estratégico. Mas há uma saída: o hidrogênio verde. Já existe um investimento de US$ 6 bilhões no Ceará para isso. É a produção a partir de energia limpa, em vez do gás natural. Desta forma, o Brasil pode se destacar como o único país a produzir uma linha de nitrogenados verdes. Mas isso é um cenário para o futuro, daqui uns três anos.

Pode-se prever que o País tem condições de ser autossuficiente de fertilizantes?
Para ser autossuficiente, vai depender da nossa capacidade de atrair investimentos. O Plano Nacional de Fertilizantes, recém-lançado, prevê chegar a um abastecimento de 60% do mercado em 30 anos. É um plano muito modesto. Dada a importância do agronegócio para a nossa economia, o Brasil deveria buscar pelos menos 85% de abastecimento nos próximos anos. Assim, estaríamos menos sujeitos a crises de fornecedores como Rússia, Ucrânia, Afeganistão, China e Irã. O Canadá é uma exceção. Mas a maior parte dos fornecedores está em países expostos a algum risco. Então, falta um plano estratégico.

Isso é um problema atual ou crônico?
Historicamente, o Brasil não tem planos estratégicos de Estado. Só tem plano estratégico de governo. Com isso, o País não oferece segurança jurídica. É sempre difícil prever como estará o Brasil em quatro ou cinco anos. A cada novo governo, muda tudo. No Brasil, os governos só ficam resolvendo questões conjunturais, nunca atacam os problemas estruturais.