20/04/2023 - 5:20
Mesmo com uma das matrizes elétricas mais limpas do mundo, com cerca de 90% de fonte renovável, o Brasil ainda pode contribuir de maneira relevante com a transição energética global. A opinião é de Rui Altieri, presidente da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE). “Um dos nossos principais deveres de casa é usar todo nosso potencial para eletrificar os outros setores”, afirmou à DINHEIRO, citando como exemplo os segmentos de transporte, construção civil e indústrias em geral. Para acelerar o processo, defende que o País invista em uma nova versão do Programa de Incentivo às Fontes Alternativas (Proinfa), que em 2002 beneficiou a produção de biomassa e de Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs). A reedição, porém, seria voltada ao aumento da competitividade do hidrogênio verde, combustível sustentável que deve ter sua primeira usina inaugurada no País até o fim deste ano.
Como a CCEE avalia a pressão pela transição energética global?
Acreditamos que o combustível para esta etapa de transição energética é o gás natural. Nós temos que substituir as usinas térmicas poluentes por outras menos agressivas. Mas é uma transição. No futuro, a expectativa é que o Brasil não utilize nenhuma forma de combustível fóssil e que as fontes solar e eólica tenham tamanha penetração na matriz energética que as hidrelétricas não terão nem espaço para usar todo o seu potencial. Claro que, por segurança, devemos manter algumas térmicas em atividade, mas a ideia é que elas não sejam necessárias. A partir daí não existirá mais transição energética no setor elétrico, ela estará completa.
E nos demais setores?
Um dos nossos principais deveres de casa é usar todo nosso potencial para eletrificar os outros setores como transporte, construção civil e as demais indústrias, muitas delas ainda dependentes de combustível fóssil. Temos que aumentar a participação do uso das energias solar e eólica. Mas, para nós, o gás natural é o combustível da transição energética. Já o hidrogênio verde é o combustível do futuro.
O crescimento da oferta do hidrogênio verde não esbarra em certificações e regulações do mercado no Brasil?
Isso é um problema não só no Brasil, mas em todo o mundo. Temos muitos projetos-piloto no País e existe uma expectativa de que a primeira planta de hidrogênio verde de porte razoável comece a operar no final deste ano na Bahia. Ela já será inaugurada com o Selo Verde do Brasil conferido pela CCEE, uma garantia de que o projeto é realmente de baixo carbono. Somente nós podemos dar essa garantia porque somos a única instituição que tem o controle da medição, do consumo e dos contratos dos associados — 14 mil empresas entre geradores, distribuidores e grandes consumidores de energia (consumo mensal acima de R$ 160 mil). Nós inclusive somos os coordenadores de um grupo de trabalho global sobre certificação de energia e hidrogênio renovável que está em curso no Comitê Internacional de Produção e Transmissão de Energia Elétrica (Cigre), na França. Isso tem um valor imensurável tanto para o mercado interno quanto para a exportação.
Há demanda para o hidrogênio verde brasileiro?
Mercado existe, tanto interno quanto externo. Temos, porém, que vencer algumas barreiras para que o hidrogênio verde alcance preço mais competitivo. Esse mesmo processo aconteceu com as energias solar e eólica quando em 2002 o Brasil criou um programa de incentivos chamado Proinfa (Programa de Incentivo às Fontes Alternativas). Naquela ocasião, o plano era contratar 1 mil megawatts (MW) de biomassa e 1 mil MWh de Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) em uma aposta que o governo fez para tornar essas energias mais competitivas. A solar nem existia naquela época. E deu muito certo. O hidrogênio verde está nascendo agora. É necessário instrumentos e tempo para que o combustível fique mais atrativo comercialmente, uma vez que ambientalmente ele já é.
Outra fonte limpa que vem ganhando força é a biomassa. Como o senhor vê essa alternativa?
As usinas de cana-de-açúcar já geram energia de biomassa em grande escala, como subproduto do açúcar e do álcool. Em outros mercados ainda há desafios. A indústria de papel e celulose, por exemplo, produz o licor negro, resíduo energético que antes era desperdiçado. A questão é que ele não é competitivo. O custo é a maior barreira para o crescimento de energia de outras fontes renováveis.
A distribuição da energia renovável não é inviabilizadora de aumento de escala?
Temos alguns desafios. A biomassa de cana, por exemplo, é um material pesado, volumoso que tem um custo associado e cujo transporte precisaria ser feito com veículos que não fossem movidos a diesel.
E a intermitência da solar e eólica?
Isso não é um problema, é uma característica. Nossos reservatórios são grandes baterias que conseguem armazenar volume considerável de energia. Além disso, o Brasil pode trabalhar com a complementaridade energética. A biomassa de cana-de-açúcar, por exemplo, tem uma característica muito adequada para o Brasil: a safra começa em meados de abril e vai até meados de novembro, justamente o período de seca. Dessa forma ela complementa a energia hidrelétrica que sofre nesses meses, mas temos abundância energética de novembro a maio. No caso da célula solar ou eólica, no último mês de março foi inaugurado o primeiro complexo híbrido na Paraíba. Aqui não dá para falar nem em falta e nem em excedente. Uma é complementar à outra. E o melhor: no sertão paraibano já existem projetos de remuneração pelo uso da terra para quem a utiliza como fazendas energéticas.
A Europa já está proibindo a compra de energia produzida em terras que deveriam produzir alimentos. De que forma isso impacta projetos como o da Paraíba?
Essa questão surgiu na produção do álcool, e aqui não consigo opinar. Mas na energia elétrica conseguimos rastrear toda a geração e garantir a não competição com a produção de alimentos. O uso da terra pelos parques eólicos ou solar em regiões do sertão nordestino não impede o desenvolvimento de lavouras que, na maioria das vezes, são de subsistência. O modelo não gera um problema social, ele ajuda na solução, já que remunera pelo uso da terra.
Mas e quanto ao impacto ambiental?
Toda usina, seja hidrelétrica, solar ou eólica tem um impacto ambiental que precisa ser mitigado. Na minha opinião, o setor elétrico faz isso bem de forma geral. Quando um projeto não é totalmente mitigado ambientalmente, é compensado socialmente com construção de escolas, casas, estrutura de saneamento.
Como estão as projeções para o mercado de energia?
O gargalo que existe para aumentar a participação de fontes renováveis é o baixo crescimento do mercado que não ultrapassou os 2% nos últimos dois anos, enquanto a média histórica é de 3% a 4%. Para 2023, o aumento previsto é de 2,6%, sem considerar a micro e minigeração distribuída. Já para os próximos cinco anos, a indicação é de crescimento anual de 3,2%, atingindo 81.540 MW médios ao final do período.