A rotina de Klaus Curt Müller está agitada como nunca. O executivo preside a Associação Nacional da Indústria de Pneumáticos (Anip), representante das 11 maiores fabricantes de pneus do País, que operam 21 fábricas no mercado local. Segmento que gira ao ritmo da indústria e do varejo automotivo e enfrenta adversidades. A mais prejudicial delas ocorreu em janeiro de 2021 quando o governo federal (na gestão de Jair Bolsonaro) zerou a taxa de importação de pneus de carga, à época em 16%. A medida gerou perda de receita das empresas que atuam no Brasil, adiamento de investimentos, revisão do plano produtivo e ameaça de demissões. O setor gera 28 mil empregos diretos e quase 900 mil indiretos.

Qual foi o comportamento do setor desde a chegada da pandemia?
Em 2020, a indústria fez um esforço muito grande, porque houve efeito chicote na demanda. Todo mundo parou. Mas nós não. Tínhamos que fornecer pneus para reposição. Afinal, abastecemos dois mercados: o de equipamento original, que é a venda para as montadoras; e o de reposição, venda direta para quem está rodando. Em alguns momentos daquele anos, aumentamos a produção acima de 20%, sem parada. As montadoras venderam caminhões, carros e usaram os pneus que estavam disponíveis. Depois houve a interrupção da cadeia produtiva. Quando voltou, veio com demanda represada.

Como ficou a situação?
Quando falamos em logística geral, o País estava rodando e não tivemos problemas. Mas especificamente na indústria de pneus uma decisão do governo federal tomada em quatro dias úteis foi absurda: a redução a zero da alíquota de importação do pneu de carga, modelo muito importante na nossa matriz de produção. Eu diria que ele é o pilar. Se não o mais, um dos mais importantes modelos dos vários tipos que fabricamos. Um pneu que consome muito insumo.

Quais foram as consequências?
Aumento das importações a partir de fevereiro de 2021. Esse foi um movimento relativamente ruim porque provocou o aquecimento artificial do mercado. Já em 2022, dois fatores aconteceram. O primeiro, em decorrência da decisão federal, foi que as importações dominaram as vendas. Isso deixou a indústria com capacidade produtiva acima do histórico, enquanto o mercado para o produto nacional estava abaixo do normal. O outro, foi o Proconve [inicialmente para novos modelos de caminhões e ônibus e, em 2023, para todos os demais fabricados e comercializados no Brasil] com motores a diesel fabricados com nova tecnologia para reduzir emissões. Todo esse cenário levou à antecipação das compras nos meses anteriores à virada do ano, porque em 2023 é certo que o preço subirá. Isso mostra que teremos um ano pior.

De quanto foi esse impacto?
Apenas em agosto de 2022, com base em dados do próprio governo, foram importados 432 mil pneus, o maior volume do período nos últimos 12 anos. Em 2016 inteiro, por exemplo, foram chegaram ao País 835 mil. Nesse ritmo, o encolhimento das vendas de pneus nacionais de carga deve chegar a 500 mil unidades em 2023, com perda de receita de R$ 500 milhões para a indústria nacional. Vale lembrar que até 2021, o Brasil mais exportava do que importava pneus de carga. Com a alíquota a zero, a situação se inverteu. Tivemos déficit na balança comercial de exportação [os pneus são provenientes principalmente da Ásia, majoritariamente da China].

Qual foi a justificativa do governo para a redução?
Foram colocadas várias justificativas. Na verdade, a medida foi tomada para fazer um agrado aos caminhoneiros, mas não resolveu a situação. Na prática, o pneu importado roda menos e tem menos reforma. Então, no final das contas o caminhoneiro vai ter prejuízo.

E os desdobramentos na cadeia?
O impacto chegou na reta final de 2022. O pessoal da borracha natural foi a Brasília para explicar a situação. Eles já sentem os estoques, porque a indústria está reduzindo a produção. Isso falando mais de carga. O restante está mais ou menos balanceado. E há também o pessoal do aço que está bastante preocupado. A cadeia também já sente a frenagem. O que estamos explicando para o novo governo [do presidente Luiz Inácio Lula da Silva] é que não queremos demitir, mas que é matematicamente lógico ter que fazer isso no começo do ano, caso não ocorra uma alteração na alíquota. Se o governo não rever a política de impostos de importação, teremos de demitir.

Você acha que o novo governo assimilou a informação?
Tivemos reuniões, e a sensibilidade do governo foi muito boa. Eles entenderam a questão de modo muito mais transparente, muito mais claro do que a gestão que terminou. Temos uma visão de indústria, de cadeia, de emprego e da importância da indústria não só no Brasil, mas de todos os países produtores que estão trabalhando para mantê-la ou aumentá-la.

E se a decisão não for revista?
Teremos um cenário muito ruim. Se essa situação continuar, a indústria pode decidir importar os pneus também e não mais produzi-los no Brasil. O País ficará dependente do mercado externo. De ter ou não pneu. O Brasil pode depender disso? Não pode, porque toda nossa logística roda sobre pneus. Se não existisse produção nacional durante a pandemia, teríamos parado porque não havia produto no mercado internacional. Cinquenta e um por cento do mercado mundial de pneus é produzido pelas seis empresas que estão no Brasil, as seis grandes [Bridgestone, Michelin, Goodyear, Pirelli, Dunlop e Continental].

E os projetos, como ficam?
Imagine uma coisa: você vai jantar numa quinta-feira e descobre que o governo vai reduzir a alíquota. E na quarta-feira da semana seguinte, o imposto já foi eliminado. Como explicar isso para as matrizes? Temos investimentos para chegar, mas eles perderam velocidade. E, obviamente, se a situação não se alterar, o Brasil perderá mais um ponto no ranking de prioridade para investimentos globais, porque a matriz vai olhar para onde é mais seguro. Nós temos um montante de R$ 1,5 bilhão mais ou menos parado. Dinheiro que poderia estar sendo usado para diversos projetos.

Quais, por exemplo?
O setor está trabalhando para incrementar a produção através do aumento de produtividade e de tecnologia no campo. Como o caso da borracha natural. Hoje, produzimos entre 40% e 45%. Importamos o resto. Nosso objetivo é ter essa produção 100% internalizada. No Ocidente o único país que tem borracha natural e fábrica de pneus é o Brasil. Então, imagina qual é a possibilidade e a oportunidade que nós temos de ser aqui um hub de produção de pneus e artefatos de borracha também. E melhorando a competitividade de preço, reduzindo o custo para o produtor.