26/02/2021 - 11:00
A demora do governo Bolsonaro em quitar o pagamento das 10 milhões de doses da Coronavac, enviadas a partir de janeiro ao Ministério da Saúde, sacrificou o contribuinte paulista, já que foi necessário desembolsar previamente os recursos para garantir os lotes. Somente poucos dias antes de completar um mês é que a União depositou R$ 505 milhões ao estado. Pelo menos 90% das vacinas aplicadas no País têm como origem o imunizante produzido pela Sinovac em parceria com o Instituto Butantan. As afirmações de João Gabbardo, coordenador-executivo do Centro de Contingência da Covid-19 de São Paulo, indicam que a lentidão é “má vontade” do governo federal com o Butantan. “Tudo que for possível para que essa vacina não seja a protagonista na imunização dos brasileiros, vai ser feito”, disse. Para o médico, o toque de recolher anunciado pelo estado, das 23h às 5h, até o dia 14 de março, é uma importante medida para frear o avanço do vírus e a alta dos casos no interior de São Paulo.
DINHEIRO – São Paulo tem sido responsável pelo fornecimento da maioria das vacinas no Brasil. De que forma isso onera os cofres estaduais?
JOÃO GABBARDO – É exatamente esse o ponto. Se houvesse interesse do Ministério da Saúde em relação ao Butantan, isso poderia ser feito de uma forma muito mais amigável. Isso é só um exemplo do que eu entendo como má vontade. Para fazer a aquisição da AstraZeneca, foi feito pagamento antecipado e só estamos com 2 milhões de doses. E essas doses só vieram porque tinham a expectativa de fazer a primeira vacinação no Brasil com a da AstraZeneca e não com a do Butantan. Provavelmente se nós não tivéssemos conseguido trazer a vacina do Butantan, ainda não teria chegado nenhuma. O País estaria sem vacinação.
Isso significa que, de fato, o contribuinte paulista está arcando com esse custo?
O governo estadual tem de fazer pagamentos para ter esses insumos no Brasil. Assim, o contribuinte paulista paga antecipado para que o Brasil possa ser imunizado com a vacina do Butantan. Mas o governo federal poderia ter feito antes o pagamento da Coronavac para não sacrificar o contribuinte de São Paulo. E todas as mensagens do governo Bolsonaro diziam que era uma vacina da China, vacina do Doria, que ninguém queria no mundo. Eles entenderam que o Brasil não queria a vacina e pararam de enviar por um tempo. Isso só desatou quando o governo de São Paulo tentou refazer a relação e após a liberação do uso emergencial pela Anvisa.
Houve alguma mudança após a aprovação emergencial?
Desde o início, as coisas com o Butantan têm ocorrido por obrigação, porque não tem outra saída. Isso valeu no primeiro contrato, de 46 milhões, e o segundo, de 54 milhões. Cada dia parece que tem uma dificuldade, que confirma a tese de que o ideal para o governo seria não depender do Butantan. Isso que é triste. E o ministério só pagou o que já foi entregue, em torno de 10 milhões de doses.
O certo era pagar antecipado?
Na situação que a gente está hoje, de alta competição para aquisição das vacinas, boa parte dos fabricantes está exigindo pagamento antecipado. E os países têm feito isso. No caso do Butantan, poderia ser no recebimento. Recebeu, já paga.
Para acelerar o processo. Se não onera o estado de São Paulo. Nessa segunda etapa, que seria entregue até setembro e vamos antecipar para agosto, foi feito modificação e agora o governo federal precisa pagar em até 15 dias. Tudo que for possível para que essa vacina não seja a protagonista na imunização dos brasileiros, vai ser feito por eles. Quando tiver alternativas de vacinas é até provável que o governo federal não tenha mais interesse pela do Butantan. Por enquanto, eles têm pedido mais. O Ministério da Saúde enviou ofício perguntando se há interesse para fornecimento de mais 30 milhões de doses, além das 100 milhões já encomendadas.
E o sr. acredita que há interesse real da compra?
Para mim, o que tem nesse pedido é o enorme receio de que o governo de São Paulo fique com alguma parte das vacinas para acelerar o processo de vacinação no estado. Enquanto temos compromisso de entregar 100 milhões, não podemos utilizar nenhuma dessas vacinas exclusivamente para São Paulo. Nosso compromisso é de primeiro entregar essa quantidade, para, a partir daí, produzir para uso pelo governo estadual. E o estado levantou a possibilidade de ter 20 milhões de doses para poder acelerar a vacinação em São Paulo, para ter todos os paulistas estarem vacinados até o fim do ano. É bem provável que esse interesse seja muito mais para impedir que São Paulo tenha velocidade diferente do resto do País. O governo federal não acelera e impede de acelerar. Não podemos perder tempo por falta de vacinas.
O setor de bares e restaurantes tem criticado as mudanças constantes para liberação do funcionamento. O que o senhor pensa a respeito?
Claro que o abre e fecha é um problema. A gente precisa ir atrás do vírus. Se há aumento em uma região, pressionando o sistema de saúde, naquela região é necessário reduzir a mobilidade social. É um ajuste baseado em indicadores. Mas também acho que há um bom trabalho sendo feito no ambiente dos restaurantes, há certo controle. Não acho que ali seja o grande problema da transmissão da doença. Mas os bares são. As pessoas ficam mais próximas, falam mais alto, ficam mais tempo. O ideal seria se a gente pudesse tratar o restaurante diferentemente do bar, mas é difícil porque muitos vendem alimentos.
O que motivou a decisão de adotar toque de recolher no estado entre 23h e 5h até o dia 14 de março?
O Centro de Contingência está preocupado com o que está acontecendo no interior de São Paulo. Há regiões com taxa de letalidade muito alta e a presença da variante do vírus. A gente está vendo a situação em Porto Alegre, que hoje está com fila de espera para leitos. A Região Metropolitana está relativamente bem, mas não há como garantir que esse aumento de casos se aproxime. Vamos observar nos próximos dias se isso é suficiente ou se é necessário medida mais radical. Não adianta só leitos de UTI. A gente precisa também trabalhar para reduzir a possibilidade de as pessoas ficarem doentes.
Ainda há espaço para negacionismo?
Não deveria, principalmente quando se propõe à população soluções mágicas. Isso é o mais prejudicial nesse processo. Me preocupa é que muitas pessoas, ao tomar esse tratamento precoce (combinação de medicamentos como cloroquina, ivermectina e azitromicina), defendido pelo governo federal, ficam com essa falsa sensação de segurança. Esse é o grande problema. Eles defenderam isso claramente em muitas ocasiões. Não dá para negar agora.
O que difere o período em que esteve no Ministério da Saúde da gestão atual?
A ciência e a transparência. As condutas que tomamos eram baseadas nos conhecimentos que tínhamos na época. E houve uma evolução nesse período. E desde o primeiro momento fazíamos questão de compartilhar as informações, mesmo quando não sabíamos de tudo.
Qual era seu sentimento, como médico e integrante da equipe do Ministério da Saúde, ao ver o presidente causar aglomerações e a negar o aumento da doença?
Sentimento de impotência. Não sabíamos o final desse filme. O que a gente mais sentia era que tentávamos passar a mensagem de que a diminuição dependia de medidas de distanciamento e o presidente saía para comer cachorro-quente. Quando saímos, tínhamos 2 mil óbitos. Hoje temos mais de 250 mil. A gente se sentia desmoralizado. E até hoje o Brasil está dividido entre os que defendem o distanciamento social e os seguidores negacionistas.
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