Dante Gallian levou a academia a sério. É graduado em história, mestre e também doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Já seu pós-doutorado é pela École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris. Mas como historiador foi na medicina que encontrou espaço para aplicar sua formação. Na Escola Paulista de Medicina (EPM/Unifesp), criou e dirige o Centro de História e Filosofia das Ciências da Saúde, é professor de História da Medicina e de História e Filosofia das Ciências e Bioética, além de coordenador do Laboratório de Leitura. Em paralelo, desde 2012 atua no mercado corporativo por meio da Arca. A empresa fundada por ele leva o repertório humano à formação de profissionais em postos de liderança. Dessa experiência, lançou seu último livro: Responsabilidade Humanística – Uma Proposta Para a Agenda ESG, em coautoria com Alexandre Seraphim. Para todas as áreas, aplica o mesmo princípio. “Entender a complexidade do humano envolve não só aspectos biológicos, mas também os psicológicos, culturais, sociais”, disse à DINHEIRO.

DINHEIRO — O sr. construiu carreira no campo da medicina usando história e leitura para formação humana de profissionais de saúde. De repente, um livro sobre o ESG. O que motivou essa guinada?
Dante Gallian — Criamos o Laboratório de Leitura na EPM para fomentar a formação humanística na área da saúde. Como o curso em si é muito técnico e científico, os profissionais precisavam entender que a complexidade do humano envolve não só aspectos biológicos, mas também psicológicos, culturais e sociais. Com o sucesso da metodologia, começamos a aplicá-la em outros contextos. Isso coincidiu com o momento em que o mundo corporativo se voltava ao ESG, com olhar inédito para a saúde mental dos funcionários. Foi quando entenderam que ao focar em resultado e performance exigiam do homem comportamento de máquinas. Haviam esquecido que somos humanos. No fim, isso é contraproducente.

Interessante colocação no momento em que a Americanas, com influências da escola Ambev, segundo a qual o resultado e a performance estão acima de tudo, enfrenta um escândalo financeiro. É mais uma evidência da falência do modelo?
É uma crise anunciada. Exigir que as pessoas trabalhem no ritmo de máquinas, não é humano. Toda vez que nos distanciamos do que é próprio do humano, adoecemos. O fenômeno Americanas é eloquente porque está muito ligado à ambição, aos ganhos a qualquer custo, à busca de um retorno rápido e desequilibrado. É o sintoma de uma mentalidade e de um sistema corporativo patológicos.

Há esperança de algum resgate do humano no ambiente corporativo?
Esse é o grande desafio. Temos que transformar o local de trabalho: de um ambiente patológico para um que promova a saúde. As empresas têm que assumir a culpa pelo adoecimento das pessoas, e a responsabilidade pela cura. Não é só por questões de humanidade. É pela viabilidade social e eficácia corporativa. Afinal, o que as empresas farão com pessoas doentes, que estão incapazes de produzir, pois estão inutilizadas emocional, mental e até intelectualmente?

Substituí-las. Ou não é isso que muitas empresas fazem: ameaçam que na hora que você não reponder com o ritmo que querem, facilmente te substituirão?
Há uma nova geração que já não acredita que é tão substituível assim. Além disso, o mundo do trabalho se transformou com a revolução tecnológica. Atividades que eram realizadas por funcionários pouco qualificados, portanto, facilmente substituíveis, não são mais desempenhadas por pessoas. E sim por máquinas. O lugar que ficou para homens e mulheres é o da inovação, criatividade, sensibilidade e raciocínio complexo. Esses são muito mais difíceis de serem substituídos.

Como a reapropriação do homem de seu papel de trabalhador pensante e criativo impactará o mercado?
Vemos muitas empresas investindo na formação de talentos como ferramenta de retenção que se queixam que esses profissionais vão embora. Mas muitas vezes o problema é a falta de um ambiente saudável. Até agora, as pessoas escolhiam entre ficar e adoecer, ou ir embora. Esse é um pouco o pano de fundo do movimento da demissão silenciosa, uma estratégia das novas gerações para enganar quem a princípio quer enganar a elas: empresas e líderes que trabalham dentro de uma antiga mentalidade com os referenciais da escola Ambev, por exemplo. A renovação do quadro das lideranças será exigida por quem está chegando.

Ao falar em liderança, não dá para fugir do fato de que durante quatro anos o País foi governado por Jair Bolsonaro, negacionista das questões humanísticas e humanitárias. Como isso mudou a coesão social brasileira?
O fracasso, a falência dessa proposta se materializou de forma trágica e eloquente [ele se refere à invasão dos prédios dos Três Poderes no dia 8 de janeiro]. Acho que a maior parte dos empresários, aqueles com repertório pouco mais sofisticado, percebeu que a abordagem proposta era no mínimo ridícula. Mas o perigo é que há uma parcela do empresariado que embarcou nela. O resultado é frustrante na política e na sociedade. Se levarmos isso para o âmbito corporativo de gestão de pessoas ela é suicida.

O que isso significa?
A tendência quando você se vê numa época de insegurança, de incerteza, de medo, é voltar para alguma coisa onde supostamente você foi mais seguro, onde você lembra de sentir uma proteção, um refúgio, uma segurança nos valores tradicionais.

É o que lembram ser a ditadura?
Exato. É a busca pelo autoritarismo. As pessoas têm uma facilidade enorme de acreditar em ficções. Aqui entram mecanismos psicológicos em que os donos da narrativa fazem uma espécie de seleção de memórias e prometem fatos que não se realizarão. Ainda que não seja real, há pessoas que acreditam que o Período do Milagre Econômico foi extenso e que houve proteção dos valores sociais e familiares. Só que aquele passado nunca existiu; é uma construção a partir de pequenos trechos. E mesmo se tivesse existido, passado não volta mais.

Como equalizar forças tão opostas: o desejo do autoritarismo e as boas práticas ESG?
Vivemos uma crise sistêmica de modelo civilizacional. De um lado, temos pessoas engajadas na construção de uma sociedade mais justa. Do outro, um espaço no qual o discurso reacionário encontra espaço para crescer. É uma total esquizofrenia.

A pressão do capital pelo ESG mira resultados, mas não pode trazer como efeito colateral a transformação social?
Acho que sim, mas é preciso ter cuidado. Há certa tendência dentro do ambiente corporativo em direção à superficialidade. Como a lógica empresarial é muito imediatista, o que se espera muitas vezes são propostas simples, de fácil implementação e de resultado no curto prazo. Muito do que se fala de ESG é balela. São metodologias, antigas, requentadas. Agora, que o ESG traz uma oportunidade, é fato. As chances para o caminho de uma verdadeira renovação corporativa estão dadas. Basta percorrê-lo.